sexta-feira, outubro 05, 2012

Tal


            Passara alguns perrengues durante o inverno. Ia do inchaço na garganta à febre, e da febre à cama. Ardiam-me os ossos do frio, e batiam os dois andares da boca. A primavera reservara-me alguma alergia e o verão não me era saudável. Queria alguma entre-estação que me deixasse adormecer à tarde e despertar à noite, assíduo e fiel às afiadas e fatídicas madrugadas insones, e sem palpitações.
            Fui ao povo. E o povo a mim não veio, como se resistisse duramente às minhas investidas homicidas. Fui ao mesmo porta-retrato em que estou, ríspido e intacto, como em qualquer fotografia. Chorei tantas vezes lembrando do cheiro. O róseo enfumaçado que enrabava as narinas. A ante-sala, repleta de adereços, panos e desculpas esfarrapadas. O cheiro vinha de alguma panela, ou do ranger da mesa, dos cacos de vidro ainda nem consumados, dispostos no copo, inteiro e recheado por cima da pedra cinza. Não era um cheiro. Nem uma lembrança. Era o choro pelo copo, pela solitude da mesa e pelos ires e vires da madeira na panela. Vinha de lá, e assim retornaria ensaboado em alguma fenda que o relógio dedicou a mim.
            Nada tão caseiro quanto a própria casa. A velha casa adocicada, corroída e romantizada pelo impávido olhar do tempo. Os meios e estratagemas, fins e arrependeres. Tudo era cheiro indecifrável, como alguma navalha sem uso, humilhada por entre fêmeas e homossexuais.
            Deito-me outra vez, esperançoso de alguma desesperança. Adormeço e não vejo tudo. Contento-me com a paz da perda, com a salubridade das intenções revogadas, não admitidas e deixadas de lado feito os dias. Lembro de virar-me, de abrir os olhos e querer fechá-los. Lembro-me de uma canção, e dos amores insanos que dediquei masturbações respeitosas, cuidadosamente escritas no tesão em branco. Escuto as veias. Assim espero a próxima enfermidade.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Um conto? Muito mais do que isso. Bom pra cacete!

7:33 AM  
Anonymous Paulo Giroldo said...

Gênio.

4:45 AM  
Anonymous Gregório said...

Mais uma vez maravilhoso. Tua estética é invejável! E é tanto escritos de merda por aí... por favor, continue.

5:11 PM  

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