Dias que não pesam na alma são como almas
que não sentem os dias. Somos inteiramente um engano proposital, esperando a
solução milagrosa ao fato incurável. Tenho medo da alegria. Parece-me falta de
caráter declarar que os minutos não castigam-nos. Relógios parados são a
felicidade de tudo, e tudo é a impossibilidade de que os relógios parem.
Pessoas, conversas e intenções, ratos, cidades ou não, tudo é realmente tudo. O
nada dos passarinhos, a beatitude a que fomos excluídos, perturbam a capacidade
de confirmar os compromissos da felicidade humana. Sentir-se vazio é um
exercício que cabe aos loucos. A simples idéia de que ao escapar dos limites de
meu próprio corpo, sou o nada que não sobrevive à necessidade de ser. Ser,
planejar e agir. Essa é a ilusão imensa a que submete-se o homem. Essa é a
perdição sufocante que resta a mim. Imaginar como se a realidade fizesse parte
de meus sonhos. Como se não houvesse sonhos. Como se não houvesse nada que não
fosse o próprio nada. Vazio como o final da noite, simples como gangorra de
praça.
Passara
numa rua próxima ao trabalho. Alterava outra vez o caminho de volta. As
calçadas cheiravam à goiaba. Parecia que as recém caídas carregavam alguma
peculiaridade no aroma, diferenciando-se das que ainda aos galhos agarravam-se.
Podia sentir que aquelas, ainda redondas e recheadas, cheiravam como casca,
como cesta lotada à espera de um devorador. Outras pobres esparramadas pelo
chão, cheiravam à morte. Sementes e polpas perdidas. Vi-me tão inexistente
quanto o esparramado de sementes no concreto útil aos pedestres. Tinha
peregrinos na alma e a impossibilidade de renascimento tão concreta quanto a
sabedoria de uma semente.
Via
nas possibilidades do sol alguma mudança primordial que diferenciava o aroma
dos dias. Eram escuros, intensos, lotados de velas acesas ou propícios para o
pranto incessante. Se os dias fossem realmente idênticos, talvez nós,
pedestres, motoristas e passageiros, fossemos diferentes um do outro. Não da
maneira que fingem as professoras, ou que comprovam os inteligentes, mas de
maneira certa, como as possibilidades do dia. Pedestres, motoristas e
passageiros. Que mais somos? Parecemo-nos aonde com algo distinto à isso? A
impotência frente ao desafio da liberdade. Motos, cadernos, fogões e panelas. A
vida não se divide em etapas, como atestam os mesmos professores e
inteligentes. A vida divide-se nela mesma, como vento carregando vento.
2 Comments:
Que poder com as palavras. Que transcendência. Tão necessária.
Muito lindo.
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