sexta-feira, abril 14, 2023

A Nau dos Insensatos: Morte e Massacre nas Escolas.



        Publicado em 1494, o poema Navis Stultifera, de Sebastian Brant, retratava a embarcação que, atolada de inconsequentes, glutões, doidivanos, preguiçosos e avarentos, dirigia-se rigorosamente a uma ilha chamada “Insensatez”. Foucault, na História da Loucura, retoma a imagem da nau, e a alegoriza para descrever o macabro itinerário dos indivíduos indesejados na Idade Média. Dos manicômios, hospitais e leprosários, essas criaturas eram constantemente segregadas do convívio social. Feiticeiras, hereges, vadios e embriagados, vagariam portanto sobre as águas, desaparecidos. A loucura, que para Foucault, não seria unicamente uma ilustração histórica, e sim, substancialmente uma experiência originária e essencial, que a razão, a compreensão e a realidade, ao invés de descobrir, ocultou, omitiu, pensou ter calado e dominado. Mas jamais a destruiu completamente, deixando-a perigosa e enfurecida. 

            Denunciada por Nietzsche, a Sociedade Socrática, amoriscada e fascinada pelo espírito científico e racional, fez-nos espectadores do nascimento da tragédia, que por ora, degustaria a repressão e o sufocamento que apressadamente viria através dos peritos e teóricos da lógica e da racionalização. 

            Se por um lado somos cotidianamente delirantes, imprudentes e imoderados, por outro amargamos aprisionados a condição de reféns da insensatez, da insanidade. O absurdo é arte, e dele nada podemos prever. Não há prenúncio ou conjecturas. Nada foi subtraído ou vandalizado. Não há formação de quadrilha, planos, estelionatos ou golpes. Estamos diante de um evidente e inteligível sintoma de nossa própria liberdade, como fugitivos das amarras morais e lúcidas. A expressão simbólica dos conflitos e traumas individuais, ganha potência bélica com o consentimento da massa. 

            A sociedade das curtidas e views capta impiedosamente os que buscam o reconhecimento. Do ressentimento, da invisibilidade e do tédio, nascem os indômitos e hediondos, que arremessam o próprio corpo, junto da alma, em um compreensível abismo de fúria e disparate. A polícia não os pode deter. O exército não os pode bloquear, tampouco as políticas públicas têm comando suficiente para encostar na consciência e no ímpeto. 
            A banalidade do mal há de sentar à mesa, e depois de alguns anos em que permitimos, como corpo social, o discurso beligerante, zangado e odioso, essa banalidade há de ser nosso alimento. Estamos com o prato lotado, a faca e o queijo na mão. Proselitismo Marxista, guerra cultural e inúmeros pretextos desatinados e levianos, confundem e congregam os devotos, que dispostos a sacrificar seu anonimato, aniquilam. A si, ao outro e à coerência. 

            Não há insensatez trancafiada em uma embarcação. Nem barco capaz de carregar o desvario dos lares. A extravagância foi celebrada, e trará suas instalações, em escolas, creches, cinemas e circos. A exteriorização da crueldade, quando acompanhada de fuzis, pistolas, facas e espadas, nos servirá catástrofes, maiores do que nossos próprios traumas e conflitos psicanalíticos. E mesmo que o jornalismo pratique sua ética dissimulada, evitando a propaganda do assassino, o medo de nossa própria capacidade trancafiará os exércitos de triviais em suas casas. No quarto ao lado, a solidão pode fabricar uma bomba. A solidão sempre fabricou bombas. O abandono a que nem mais prestamos atenção, mobiliza as massas ao absurdo fantástico, e de lá saem estrelas gloriosas. Quem sabe um dia nosso filho vire uma série da Netflix? Resta decidir se preferimos como vítima, ou facínora. Ao menos cairia no mar de fogo, no circulo mais baixo do inferno. 

            Como disse Jack, o personagem serial killer do longa The house that Jack built, escrito e dirigido por Lars Von Trier:

- "Se você sente que não é suficiente para o mundo, então invente mentiras e torne-se uma lenda."

            Simplório seria atribuir o jorro de violência aos quinhões direitistas de uma política militar e truculenta. É nítido que desde o integralismo brasileiro, emaranhamos à energia do país, um entusiasmo extremista, ainda caótico e arrevesado, que com a eleição e a divinização de um estúpido “messias”, ganhou robustez e agigantou a massa de maníacos incoerentes, descontrolados e antidemocráticos. A velha concepção hitleriana de “sociedade em decadência”, resguarda os destruidores e terroristas, como se paladinos, intrépidos e heróis, enfrentassem a coletividade doente. Essa dimensão multifacetada, alia o crescimento da extrema direita à excruciante solidão dos corpos. O indivíduo percebe, então, que sua apetência é o extermínio dos agentes construtores dessa sociedade que o humilha, inclusive politicamente, com a insegurança da democracia.  

            Quem poderá controlar os desejos internos? Quem poderia dizer-lhes que o mundo é quem manda, e não o contrário? O horror é como o tesão, a tara, a sigilosa perversão que pertence somente ao que perverte. Nem a polícia, nem o presidente. Nem o jornal, nem a ONU. Nem a própria moral pode desmanchar a depravação ou frear a mentira que contamos todos os dias aos nossos próprios ouvidos. Leve seus filhos à escola, e reze. Principalmente por seus coleguinhas.