quinta-feira, outubro 13, 2022

Ao meu avô

Hoje meu avô foi enxergar a cidade de cima. Como talvez não tenha visto em suas minuciosas diligências nas cartografias. Agora em celestial companhia e moderna resolução, como jamais pôde encontrar nos corroídos mapas a que se debruçou durante anos, por entre os poeirentos corredores do Instituto Histórico.
 

Meu avô era um curioso. Tinha a discrição de um adulto encabulado, e a bisbilhotice de uma criança que sonhava escutar as histórias. Averiguar as personagens. Entusiasta das revoluções, independências, batalhas e nascimentos. Zeloso pelas datas, episódios, tratados e cronologias. O meu avô era memória. Não dessas, rasteiras, a que se espera evocar o mês passado, ou anos atrás. O meu avô era capaz de rememorar a tensão platina durante a Guerra do Uruguai, e voltar à 1864, como se lá estivesse ao lado dos Colorados, ou mais provavelmente, pela aversão futebolística ao vermelho, lutando em companhia do Partido Blanco. 

 Diz-se do velho que jamais foi à Europa. Afora as enciclopédias e a farta literatura que insistira declamar a mim, meu avô não saiu do Brasil. E teria motivo? Posto que seu divertimento era desvendar as ruas da cidade, como se fossem filhas. Resolver o dilema das avenidas e descrever o cotidiano porto-alegrense como se testemunhasse a balbúrdia de cada esquina. Íntimo de Castilhos, Bonifácio e Getúlio. Conhecido de Canabarro e Garilbadi, olheiro das estâncias, das charqueadas e das missões, era capaz de narrar as biografias como se estivesse presente, sentado na velha cadeira de balanço, ou no despojado e simplório assento acolchoado, de onde batia com os dedos eficientes na maquina de escrever. 

Lembro-me do jornal espalhado na cama. Todo santo dia, ao lado do chimarrão, e da velha esposa. Amiga e companheira que a saudade deve aligeirar o velho pelos caminhos luminosos que levam da vida à morte. Pelo passeio leve e acelerado que faz-nos acordar sem ter de abrir os olhos. Onde os corações, pulmões e artérias, são dispensáveis. Supérfluos. Certamente meu avô se despedirá das calçadas da Riachuelo, e andejará resoluto até a General Câmara, avizinhando-se da Borges, onde encontrará um longevo admirador a abordá-lo no itinerário. 

Sem muita paciência para as frivolidades, mas ainda assim atento à magnitude da poesia, o velho declamava Neruda ao neto ainda miúdo. Com os olhos ensopados por uma lágrima fugidia, cantava as frases com aptidão cenográfica. Ao meu avô, parece-me que a palavra foi companhia perpétua, e dias antes de partir, foi ainda capaz de proferir-me sentenças de parnasianas construções, repletas de um sofisticado e engenhoso português. Língua a que ofertou elevado respeito, cortesia e gentileza. 

Porto Alegre já não é mais a mesma. E de seu bairro tão amado, o Menino Deus. Dedico-lhe um verso de Caetano, na canção que carrega o nome das cercanias: 

"Menino Deus, quando tua luz se acenda
  A minha voz comporá tua lenda
  E por um momento haverá mais futuro do que jamais houve." 

Não poderá mesmo haver futuro, ao apagarem-se os homens como meu avô. Homens que esmiuçaram o passado, e que indagaram os relatos, os livros e as anotações. Apaixonados pela cidade, e verdadeiramente fascinados pela pátria. Que saibam construir o que é subsequente. O que virá. 

Deixa meu avô um aviso, um pedido. Até mesmo uma advertência. Cuidem do futuro como ele cuidou do passado. Sejam verdadeiramente políticos e protejam a verídica família, a comunidade e os amados, assim como fez o velho. Até os últimos dias. Entranhado em farta e encantadora literatura, pleno de uma artística e rústica delicadeza, dedicado ao trabalho e às recordações. Meu avó é um fascículo volumoso na história da cidade. Do país.