domingo, agosto 07, 2022

Solidão

 


Fui um garoto sozinho. Nunca desamparado ou desfavorecido. Há de se compreender a diferença. Sozinho. E mesmo se no meio de muitos estivesse, desabitavam-me. 

A solidão não é um caminho. Não é um sentimento. Não chega de repente assim, como a ira ou a dor. A solidão não dói. É como um cheiro de mar, que mesmo longe de qualquer litoral, pode-se perceber. A solidão é um sonho persistente. Um engano na própria capacidade de sonhar. Constante e permanente como a existência. A solidão tem sua própria respiração. Incansáveis pulmões que inflam-se como lagartas bem alimentadas. Envaidecem como um pingo grosseiro de chuva caudalosa. 



Não sei bem no que pensava enquanto caminhava nas pedras pontudas da rua vazia. Acuminadas e negras, açoitavam os pés imaturos que buscavam alguma serventia no passeio. Quando se é solitário, tudo vira poesia. Quer-se a companhia das conjunções, a intimidade com a desistência das frases. Recordo-me pouco do que não fosse solidão. O repouso das tardes em que não havia ninguém. A feroz imaginação que engendrava inutilidades, e monstros. A destruição que sempre nasce do exílio, assim como a construção rebenta do isolamento. Incoerências que enganam a ciência e caloteiam a lógica. Tudo para zombar dos sujeitos e torná-los relevantes. 



Fui um criador de temores, e há tanto de encantador no desassossego, que pude enganar alguns desavisados. Não havia em mim alegria. Havia talvez o entusiasmo de intercalar minha solidão com alguma necessária gozação. Havia a urgente deserção do medo. A efêmera utopia de uma alma festiva e radiante. Era um dissimulado. 



Acostumei a olhar o chão e nunca o céu. Fugira da banalidade das estrelas, e da infante curiosidade pelos planetas. Fui um garoto dos assoalhos, dos pavimentos e das gramas. A solidão fazia-me pousar o queixo sobre o início do pescoço. Eu gostava era de enxergar a ponta dos pés, os joelhos. A pressa das formigas. Parecia que ali estavam as frases abandonadas, como se o chão hospedasse o que foi calado, a resignada palavra que por um momento, parecera perfeita, cabível. Somos o resto das coisas não ditas. O subproduto de um universo calado, esquecido e solitário. O que perversamente fugiu de uma folha amassada, de um poema não fecundado. O que escapou pela fresta de uma frase engolida. O mundo real é a inconveniência que perturba a placidez do inexistente. E o inexistente é o sustento da solidão. 



Eu continuo o mesmo garoto. Não há evolução ou metamorfose que não um conjunto de percepções, costumes e escrúpulos. Aprendi alguns segredos e atinei às soluções. Métodos, etiquetas, caminhos e prescrições. Alfabetizei-me no esquecimento do chão, na rejeição às formigas. A gente aprende até a somar os números, e dizem-nos que é importante. A gente vira o não dito, e as palavras caladas abarrotam as gavetas do corpo. O corpo do mesmo garoto. Solitário, como as palavras esquecidas que guarda com afinco. 



Não há prazer algum na solidão. Não há descoberta. O deserto anseia por água, após conhecê-la, e talvez todo garoto seja um deserto ávido, impaciente pela companhia do outro, pela divisão de sua jovialidade. O garoto se distrai, compete, quer o vínculo. Ainda não lhe cabe a harmonia do sexo, a afinidade apaixonada do romântico ou a sensatez monitorada de um adulto. Mas o garoto inventa a realidade num carpete. Sábio, foge como louco da solidão. 



Hoje eu não sei onde guardar minha solidão. Não há garoto, nem carpete. De gavetas lotadas e tempo escasso, percebo que solidão não se guarda. A solidão é cola, encalço. Pegadiça como mel. Com a solidão a gente faz um pacto, que eu e ela descumprimos todos os dias. 


3 Comments:

Anonymous Caroline B. said...

Lindo, lindo. Escreve mais e tudo fica mais lindo.

6:21 AM  
Anonymous Cláudio@Ro said...

"Subproduto de um universo calado"... Nossa!!
Perfeito.
A solidão sempre dói.

6:25 AM  
Anonymous graça said...

Bonito e forte como sempre.
Beijo

8:36 AM  

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