sábado, junho 17, 2017

O "Pendurado"



Na escada que dava ao pátio, havia uma folha seca, pendurada na borda de um degrau. Grudada num pedaço de teia, que num delicado fio prendia-se na pedra clara do piso. O resto, ficava pendente, imperceptivelmente envolto em translúcida camada de seda. Minha avó chamou aquilo de "Pendurado". Foram muitas conferências e prosas. Inúmeras visitas ao bichinho, até alguma faxina mais atenta levar nosso companheiro para sempre. Perda que minha avó certamente disfarçara com alguma história sobre lagoas, sapos e grãos de areia. Entre uma colherada e outra de sopa amarela, ela inventava inusitadas narrativas. Jamais minha avó reciclava os contos, ou repetia-os distraída. Improvisava enredos e arranjava peripécias, compunha inteiras aventuras que atavam-me entusiasmado e bisbilhoteiro. Zelosa com seus desfechos, minha avó não os finalizava com tristeza e soturnidade. Ao neto curioso e bagunceiro, sobravam aprazíveis finais e fagueiras conclusões.




Levaram-na daqui, assim como ao Pendurado. Há o silêncio em nossas conversas, e nos finais de tarde, já não posso mais observá-la sorrindo. Restou-me um pouco de poesia que habilidosamente ela plantou em minha alma, e ainda sou capaz de enxergar Pendurados ao invés de folhas secas. E sei que entre as teias ainda habitam romances, aventuras e tramas. Posso sentir também, que nas escadas tem mais vida do que se possa cogitar. Pois com minha avó aprendi a musicar a existência, a escutar o sussurro das minhocas e a conversa das pedras com o chão. Ainda sou capaz de enxergar os vestidos do vento e sentir o gosto nectarino das vassouras.



Esses dias mesmo, tropecei num vaso de versos e pus-me a sangrar pelos olhos, um sangue com gosto de saudade.