domingo, março 06, 2022

Pusemos também o amor em seguridade, e se pudéssemos, teceríamos apólices que o garantissem ilibado, intocável pelas indomáveis ameaças da efervescência humana. Por entre partidárias descrições em aplicativos de relacionamento, memes e tolas diretrizes fabricadas por mentores e inspiradores digitais, o amor é logaritmo, lógico, coeso e lápide. Lousa tumular como fim de epopéia. Um cansaço inevitável como o ápice de um Himalaia. Prescrições, ordens e condições, como se pudéssemos escapulir do acaso, fugir dos quiçás e dominar os infortúnios. Como se propuséssemos o fim da psicanálise e aspirássemos, contemporâneos, as líquidas e metódicas resoluções.


O Eros de Platão, como disposição primordial, limitando o amor ao tempo. Sadio e robusto desejo que, quando realizado, deixa de existir. O desaparecimento do ser amado, ao primeiro sinal de uma concretização. O velho lugar-comum de um ser humano que cobiça permanentemente o que não possui. E ao possuir, procura imediatamente o incógnito, estrangeiro, o que é invicto de sua retenção. Depois o Filos de Aristóteles, que parece-nos também apalmado, e tão rasteiro ao chão que deposita na alegria, o alicerce do amor. A escassez do deleite, da animação, prontamente fantasia o amor com as vestes merencórias da indiferença, como se a vontade e o empenho em perpetuar o sentimento, fossem vulneráveis e derrotáveis pelo momento infeliz.


Há de se respirar. E afinal compreender que a filosofia talvez tenha sufocado o amor como quem tenta traduzir poesia. Como quem pretende compreendê-la. Como quem possui vertiginosas soluções aos questionamentos da arte, e como quem explica a expressão humana em breves e convictos discursos. Requintado e elegante talvez seria assumir a posição de um descolado Nietzsche, quando considera a célebre passagem de "O Banquete", onde os deuses castigaram-nos, e dividiram-nos para que vivêssemos de falta e carência, tentando encontrar a metade que nos faltava. O sábio e afamado bigodudo, postulava o amor como dependente de uma capacidade de autocompletude e autoafirmação. Apenas indivíduos plenos de si podem amar, e não seria, portanto, o amor, mais do que um derramamento. Uma espécie de luxo e de dádiva daquilo que cada criatura conquistou por si e para si. O amor seria desejo de partilhar a própria vitória. O ato de repartir o sucesso, o equilíbrio e a notabilidade. 


Mesmo muito distantes das filosofias prussianas do Século XIX, as ruas, galpões e até mesmo o Instagram e seus desvairados, parecem adotar o pensamento descrito. Ocultam e esquecem propositadamente a insciência do amor. O que lhe torna poesia e nunca gnose, conhecimento. Repartir a ânsia, e esquecê-la com a esperança. Desabar pelo esbarro na ilusão e levantar-se pelos corrimões de uma ainda incerta e púbere confiança. Acreditar nos deuses da esquina e escutar os mantras que transportam-nos para o fundo de um oceano escuro. Não há cães, gatos ou bolinhos de chuva. O amor é assustador, e tem de ser, como o poema. É um drible no tempo, que esborracha os relógios e repinta todas as paredes. Como se pode prever a incerteza, se até sua previsão é incerta? Schopenhauer e sua indelicadeza, Voltaire e seus enfeites, Sófocles e a ingênua noção de que o amor liberta as dores da alma, Hollywood com sua miserável e inoportuna mensagem romântica…


Quanto temos maltratado o amor. Quanto o temos achatado por condições e análises. Havemos de reconsiderar, e talvez elevá-lo ao patamar que merece. Puséssemos o amor como bicho, e quiçá teríamos estudos demasiados. Cartilhas escolares e questões de vestibular. Se o considerássemos sonoridade, milhares o avaliariam, manifestando desagrados auditivos. Quem sabe se o amor virasse comida? Não. Com os reality shows, especialistas o provariam e decidiriam ali, arrogantemente, se presta ou não. O que lhe falta. 


Que deixemos o amor sem intromissões. Façamos logo dele bigode de sapo. E não se fala mais nisso.