domingo, março 06, 2022

Música e literatura. Aqui estão os meus narcóticos. Antálgicos paliativos, como Dipironas e Tylenóis. A primeira dá-me o sustento costumeiro, enquanto pela segunda, conservo somente a certeza em cometê-la de maneira mais exuberante, potente e talvez, elegante. Mas o que há de ser elegante na desordem arranjada de minhas fabricações? Pudera esperar atenção às edificações pronominais e aos ornados clamores de minhas ficções? Jamais. E respondo com indubitabilidade adolescente, posto que já não é possível atrair um olhar atento. Manuscritos, poemas e tratados, por mais rudimentares e mal-acabados, exigem o ser desobstruído, transitável e metafísico. Impõe organismos cobiçosos, ávidos monstros seduzidos pelo outro. Pelo sangue ou pelo gozo. 


A lógica traiçoeira do neoliberalismo, em atada promiscuidade com a glória da solidão, torna a necessidade da vitória ainda mais imprescindível. A repressão não vem mais de fora, e não sabemos mais contra quem revolucionar. Não há bandeira que nos valide, então balançamos bandeiras que não agitam, num estúpido processo de mitose. Nascemos de nós mesmos e resultamos em proporcionalidade, isonomia. Não pode mais haver satisfação e deleite na derrota do estranhamento, na imprudência do fracasso e na simplicidade da fraqueza. 


Culminamos portanto na autocracia do Coaching, no absolutismo da autovalorização, mesmo que isso signifique a humilhação da linguagem, a escassez imaginativa e o pior: a segurança de princípios, valores e condutas. O idiota só é realmente idiota quando passa a ter certeza de suas idiotices. E passa a ser nocivo quando as compartilha publicamente, na ilusão de ter alguma influência no corpo social. O imbecil torna-se então, comum. O indivíduo contemporâneo, que é capaz, efetivo, profundo e significativo. Somos o anti-niilismo, que como mágica, abandona o pessimismo de Cioran, a ânsia de Kierkegaard, e embarca sonâmbulo na distribuição de performances, de feições, imagens e dissimulações.


Não estamos próximos do suicídio. Somos o próprio suicídio. Aniquilamos a desinformação e suprimimos o ócio, num ócio furtivo, confeitado com os arabescos da sabedoria, com as louçanias da realização. Já não pode haver nada brusco, ousado e escandaloso, e cada passo é analisado com a lupa leviana de uma patrulha política, que já nem sabe o que significa o que. 


Estamos enrolando a merda de nosso cachorro num saquinho. E já nem enxergamos mais a merda. Já não somos capazes de contemplar nada que não seja plástico, limpo e engajado. 


Que saudade de enfiar os sapatos na merda.