A Felicidade é Azul , Preto e Branca
O que explica a felicidade? O que esclarece-nos a serventia do prazer, a função do contentamento? Vinte e seis séculos de filosofia e talvez não tenhamos chegado perto da resposta. Não há resoluções no pensamento metafísico, tampouco explicações para tão herméticos questionamentos. A felicidade é coisa emaranhada, equívoca, nebulosa. Atrapalha a lógica, desconcerta as coerências, desnorteia as dialéticas e, assim como tudo que é extraordinário, admiravelmente arremessa-nos contradições e absurdos. Como podemos não saber o que a felicidade é, e ao mesmo tempo, saber exatamente quando fomos felizes? Como é possível não compreendermos a felicidade, mas reconhecermos com precisão os momentos em que a vivemos?
Fui feliz na casa de minha avó. Da janela que cortava a alta sala aconchegante, eu enxergava os refletores do Estádio Olímpico e boa parte de suas arquibancadas. Um pouco mais acima, nas colinas da Medianeira, firmava-se a casa onde minha avó fincou raízes, criou filhos, viu nascer um abacateiro, leu os jornais e bordou sua vida em dias inteiros de afeto e silêncio. De lá eu escutava o incessante burburinho das ruas que rondavam o Monumental, e o estrondo festivo do gol, que soava um segundo antes do rádio contar o fato. Havia a balbúrdia dos ataques, e o silêncio das defesas, assim como a algazarra dos portões que vazavam como alto falante, a batucada persistente da torcida.
Para mim, pequeno e ainda intimidado pelo imenso pátio de minha avó, o estádio era coisa colossal, como um Coliseu recente e vanguardista, rodeado de ambulantes, torcedores, flanelinhas e homens eufóricos. Ir à casa da Teixeira de Carvalho, era ir ao Grêmio. Talvez pela proximidade e talvez pela felicidade. Sopas amarelas, caldas de açúcar e papos de anjo. Enredos, primos e peripécias. Que sabor nectarino tinha a vida perto do tricolor da Azenha.
Talvez o mistério seja esse. Disso já não desconfio. Parece-me que pouco importa o que é felicidade, senão descobrir onde a realidade esconde a sua doçura. Aviões, pirilampos, montanhas ou sapos, há de se aprender que o estampido da máquina de escrever, os refletores, a velha cadeira de balanço e as tardes de Grêmio, são os abraços do tempo, os afagos que aliviam a certeza inclemente de nossa fraqueza.
Há quem não os perceba. Nem os abraços, nem as doçuras. Há quem não enxergue que a luz dos refletores anunciando o início da partida, não era luz. Era lembrança. Há quem desvie o olhar quando rola a pelota, e não encontre serventia nessa dança violenta entre os homens e a esfera. Onze de cada lado, guerreando sem espadas, lanças ou katanas, num verdoso tablado onde a força se curva à delicadeza. Onde a brutalidade permeia os hiatos da lucidez, fazendo arte. O futebol não tem utilidade. É um exercício delicado e sutil sobre a percepção simbólica da vida. E eis a sua proficiência.
O futebol não se joga com as mãos. A superestimada parte final dos membros superiores, providas de carpos, metacarpos e falanges, que há tanto desgastamos em tudo o que se pode imaginar do cotidiano prático, aqui não governa coisa alguma. É como se o futebol dissesse-nos que, no chão, estão as coisas valiosas. Que aos pés devemos atentar veneração, e que ali descobriu a doçura que lhe fazia feliz. Como descobri no Grêmio, em minha avó, e em sua casa. Como descobri no azul, no preto e no branco.
Que faz um menino escolher as cores? Que tipo de dança graciosa e cheia de fúria, fugida dos teatros e encenações, apodera-se da fantasia de um lépido garoto? Era o suor, o silêncio, a dor pungente da derrota, o churrasquinho magoado de uma semifinal perdida, a mágoa enfurecida de um gol anulado. O Grêmio me fazia feliz. A vitória tricolor era, acima de tudo, um ato de beleza. Como no enlevo arrebatador de um quadro de Basquiat, ou na impactante comoção frente às missas de Bach, eu havia aprendido. A felicidade atravessa-nos. É vertigem e não razão. É impulso e não matemática. O Grêmio havia me ensinado a extrapolar, e a perceber felicidade, na desordem inexplicável da paixão. O Grêmio tinha-me para sempre. Como um tolo. Como noite que pertence ao céu, mesmo que não lhe ocupe todo tempo.
Foram copas, ligas, torneios e disputas. Vinham de longe pra afugentar o Grêmio, e o Grêmio dava-lhes reprimendas ferozes, com cabeçadas meticulosas, chutes acurados e ríspidos encontrões. Por vezes castigavam-nos, e magoavam a tarde, fazendo-me subir a lomba, de volta pra casa de minha avó, cabisbaixo e doído. O Grêmio era êxtase e desalento. O Grêmio era grito e remanso. Festa e luto, como a rotina. Ascensão e desmoronamento. O abraço e a solidão.
Quem sabe o Grêmio tenha me ensinado sobre a vida. Talvez no cimento grisalho do Estádio Olímpico, eu tenha percebido que a graça da conquista, é o percurso. E que não importam as amarguras, quando se fantasia a próxima vitória. Não importa a injustiça quando a gente culpa o juíz, o centroavante ou o goleiro adversário. É uma forma sensata de insensatez, que prepara o corpo e a alma para o confronto do ano que vem. Para o troféu que ainda não veio.
O Grêmio é mesmo estranho. Como a felicidade, feito desse desequilíbrio perfeito. Desse salto entre o êxtase e a queda, entre a plenitude e o vazio. Como poesia, como a contradição que pinta a beleza. O Grêmio é uma paixão febril. Toma-nos sem aviso, sem anúncio ou advertência e faz vibrar o peito, como a arquibancada. Faz a gente pular feito bicho, rezar pra santo desconhecido e ver-se como um estúpido, sofrendo em frente ao acaso de uma batalha desportiva. Sofrer em frente ao acaso. Ignorar as certezas da lógica. Amar os apertos, os contratempos e metamorfoses. O Grêmio me ensinou a amar. Não a convicção de sua vitória, mas a firmeza de minha obstinação. A graça de minha doença, e o encanto de saber-se pronto, para a queda e para a glória. O Grêmio me disse, desde muito cedo, que o futebol é mais importante que o mundo.
2 Comments:
Que baita texto. Parabéns!
Que baita texto. Parabéns
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