quarta-feira, março 26, 2025

Nem Todo Grito é Festa


O futebol não é só paixão nacional. Muito além das fronteiras do Trópico das Contradições, conhecido como Brasil, o futebol é um fenômeno sedutor, político e encantador. Um espetáculo coletivo que celebra a estratégia, o corpo humano, a arte e o improvável. Suor, lágrimas, sorrisos, glórias, encantamentos e decepções. O futebol foge às rígidas lógicas da razão e, portanto, vez por outra, insubordina-se às análises acadêmicas, aos diagnósticos políticos e até ao importante espelho social no qual todos nós deveríamos, habitualmente, ser capazes de enxergar nossas próprias faces. 

O que nos move, usualmente nos revela. O que nos empolga, evidencia-nos. É celebração e descoberta, euforia e confissão. Não há o que a disposição da embriaguez não exponha. Quando escorre a alegria pelos poros e a voz junta-se ao coro da arquibancada, deixamos escapar o que, no sóbrio e solitário silêncio, talvez ficasse guardado. Na catarse do gol e na comunhão do grito, emergem grosseiras verdades, e tendências mal resolvidas. O futebol despe-nos como detector de metais. Ignorar os seus aspectos políticos, as suas exclusões, falhas e contradições, é perder a chance de contemplar o Brasil de corpo inteiro. Um país que dança, canta, vibra e se emociona, mas que dissimula e se cala diante do ódio e da violência travestida de paixão.

Nas torcidas cariocas, quando o futebol ainda era mais poesia do que negócio, era comum escutar sambas-enredo na voz majestosa da arquibancada. “Aquarela Brasileira”, nascida em 1964 no Império Serrano, ecoava durante a partida no compasso do surdo e do tamborim. O estádio deixara de ser campo de batalha e virava desfile: um cortejo popular onde o grito de gol se misturava à cadência do samba. “Kizomba , a Festa da Raça”, talvez o mais emblemático samba dos estádios, principalmente entre as torcidas de Vasco e Flamengo, ecoou sua força política e social durante as partidas. Campeão em 1988, o marcante samba da Vila Isabel assentou Zumbi dos Palmares na boca do povo. Pela primeira vez em muito tempo, a memória da resistência negra não era sussurrada nos cantos esquecidos, mas cantada em fulgente coro por milhares de torcedores. 

Odes ao próprio time, brados que estimulavam o grupo de jogadores a honrar as cores que vestiam, reclamações de todo lado e até injúrias momentâneas ao árbitro, que vestido como magistrado, deixava de marcar o inequívoco pênalti a favor. Há poesia em cada gesto da boa torcida. Sempre houve. Levar o santo pro estádio, beijar o escudo antes de cada pontapé, agarrar-se na guia do pescoço, e fechar os olhos para ouvir o hino como se fosse serenata de infância. Tem criança que decora a escalação como cantiga de roda e tem velho que assiste ao jogo como quem reencontra um amor de juventude. Que vê nas cores de seu time, e na possível conquista de um troféu, um dos últimos e valiosos motivos para seguir respirando. 

Onde deixamos o fascínio? Em que poeirenta gaveta esquecemos o futebol? Quando deixamos de lado a paixão pelo time e pelo jogo e passamos a entoar ofensas, a vestir o ódio como manto e a violentar o outro com o pretexto de torcer? Onde foi que perdemos o fio do tamborim, o coro do samba-enredo, o batuque que embalava a esperança? O futebol, que já foi roda de criança, ladainha de arquibancada e procissão de alegria, pouco a pouco, se endureceu. Ganhou uma camada robusta de cimento frio. Aos poucos, deixou de ser do povo. Afastou-se do barro, da laje, do radinho de pilha, e passou a caber somente no bolso dos ricos. Os estádios se tornaram arenas esterilizadas, sem espaço pra farofa, batuque ou chinelo de dedo. O ingresso virou produto de luxo, a torcida virou público-alvo, e o torcedor popular foi empurrado pra fora. Fisicamente e simbolicamente. Elitizando o acesso ao jogo, a festa coletiva se enfraquece. O carnaval vira remanso e o consumo solitário enraiza-se. O canto vira performance e a paixão vira posse. O futebol deixa de ser, então, a vivência comunitária para virar espetáculo exclusivo, e num ambiente onde tudo é mercadoria, até o grito se esvazia. Ou se radicaliza. Onde não há espaço pro brincar, sobra espaço pro atacar. 

Nos últimos dias, o que se ouviu não foram os cantos, mas as rajadas. Palavras duras, carregadas de desprezo, de violência, e de uma virilidade oca e tóxica. Dirigentes, jogadores e presidentes, indelicados e desprovidos de qualquer inspiração política, soltam palavras simbólicas, figuradas e metafóricas, carregadas de violência, e disparadas com a naturalidade de quem esquece — ou finge esquecer — que somos animais simbólicos. E que, por isso, as palavras nos moldam, nos movem, nos convocam e encorajam. Aprende-se a odiar, como se aprende a bater escanteio. Aprende-se a violentar com a mesma facilidade com que se decora um cântico racista de torcida. A violência simbólica é a antessala da violência física. Quem aplaude o discurso violento, do sofá de casa, justifica o gesto atroz. Garrafadas, apedrejamentos, empurrões e palavras pontiagudas, são os cupins do futebol. Cochonilhas e pulgões que sugam a seiva e enfraquecem a planta, matando-a dia após dia. São impertinentes como ferrugem, nocivos como carrapatos e fatais como vírus. 

Onde andam os sambas? As famílias? Onde anda o povo que ninguém vê? Hei de escutar um teimoso e pacífico tamborim soar entre as arquibancadas? Hei de ver uma garota, de chinelo gasto e camisa larga, gritar pelo seu time com o mesmo fervor de quem reza? Eu espero que sim, porque o futebol ainda pulsa, e não deve parar de pulsar, como o pujante surdo na avenida. Ainda há, no Brasil profundo, torcedores que resistem como flores em rachadura de parede. E talvez, se escutarmos com atenção, possamos ouvir novamente o samba. Talvez ele ainda esteja ali, quieto, entre um grito e outro. Esperando que o futebol volte a ser o que sempre deveria ter sido: encontro, invenção e pertencimento. Arte, simplesmente.


                                                                Jonas Lewis da Costa Franco