quarta-feira, abril 02, 2025

Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo - Uma Reflexão Festiva

 Há quem trate o mundo como recinto ordinário, previsível. Há quem o diga como compasso exato, artificiosa coreografia aprendida, domesticada e repetida. Vestir-se com os tecidos da norma, caminhar nos retilíneos traços dos dias comuns e falar o que se espera, sorrindo no tempo certo, e calando quando o silêncio impõe sua regra austera. Boca obediente, comportada. Olhos decentes, empenhados, corpo arrumado, talhado em dobra e obediência — que aprendeu, cedo demais, a não incomodar.

Mas há aqueles — felizes, dizia Erasmo de Roterdã — que não se curvam a essa régua invisível. Aqueles em quem a lógica do mundo hesita, treme e se embaralha. Foucault diria: são os que habitam as margens do discurso, os que dançam fora do compasso. Não por desvio, mas por outra geometria — por outras formas de ver, de sentir, de ser.

Hoje é dois de abril. Dia Mundial da Conscientização do Autismo. Talvez o dia perfeito para não caber. Para não explicar, nem reduzir. Para não alinhar a diferença à cadência das definições. Talvez seja o dia de celebrar o drible. O tropeço que vira dança. A palavra que não chega, mas ressoa. O gesto que escapa — e, por isso, ilumina.

Esqueçamos as datas, calendários e cerimônias, posto que são invenções do mundo comum — essa fábrica de moldes que forja réguas para medir o que escapa, cria nomes para conter o indizível e sorrisos para fingir a paz. Um mundo que inventa calendário para domesticar o tempo, etiquetas para disfarçar o estranhamento e a rotina para apagar o espanto. É um mundo que teme o desvio, que cochicha diante do silêncio, que apressa o passo de quem ousa parar — de quem se recusa a rimar a vida com pressa. É o mundo dos manuais — onde tudo tem de ter uso, função, resposta, missão. Onde os corpos devem andar em fila, e as almas não podem tropeçar em sonho.

Hoje e, ao menos hoje, deixemos o mundo comum cochilando em sua lógica exata — e celebremos a festa sem roteiro. A fantasia que se repete com brilho refeito, dia após dia, na rotina mágica do incomum. Hoje, cantemos o Autismo e suas encanterias. Suas alquimias silenciosas e suas delicadezas que acendem estrelas no meio do dia. Falemos do jeito com que tocam o invisível e rasgam a cortina pesada da normalidade. Porque vivem outro compasso — mais profundo, mais sincero, mais inteiro. Mostram que o real não é trilho, é espiral. E que a vida não é linha reta, mas rio que se curva, serpenteia e canta seus próprios desvios.

Celebremos a sorte de quem toca nesse mundo, porque, mesmo de raspão, algo em nós também se desfaz e se refaz: desfaz-se o casco duro da pressa, o hábito de olhar sem ver e a urgência de nomear as coisas. Porque as coisas, no fundo, são só isso: coisas. Mistérios com forma, silêncios em cor, dissonâncias que transformam o acorde comum em jazz — e não mais melodia dócil, mas vertigem sonora, onde cada nota intrusa esbarra em sentimento e ressoa como quem revela segredos extraordinários ao ouvido do tempo.

E o autismo também é isso: é a quebra que faz nascer o encanto, o desvio que pulsa num ritmo verdadeiro. Porque o autismo não anda por onde se espera — ele borda pelas margens, dança nas bordas do mapa, e é ali, fora da rota traçada, que o mundo revela suas verdades mais guardadas. É na vereda, no desencaminho, onde o tempo não é tirano — é respiro. O gesto não é desempenho — é linguagem.

O autismo nos sussurra que o mundo não é plano, nem reto, nem pronto. Que por trás das lisas fachadas da rotina há dobras escondidas, frestas por onde escapa o vento de outro tempo, com cheiro de saudade. O chão, que parecia firme, revela textura secreta, terra molhada. A gente aprende a enxergar com o olho torto, o ouvido oblíquo, e a silenciar o barulho do mundo para ouvir o que não se diz em voz alta. De que segredos riem as conchas quando se perdem da maré?

É no autismo que a vida desaprende o dever e reaprende o deslumbramento. Como quem se perde do mundo e encontra, enfim, o encantamento. Celebremos, portanto, a maravilha de não caber. O afeto que anda em patas leves, se esconde como tatu-bola e ressurge, inteiro, num gesto mínimo. Celebremos o tempo que se alonga, o olhar que demora, o amor que não se explica, mas se deixa entrever — como vaga-lume em noite escura. Festejemos o respeito e a fascinação de escutarmos com a pele, de enxergarmos com a respiração e de aprendermos com aqueles que não marcham no passo certo das multidões, mas dançam, livres, imunes e, principalmente, honestos.

Exaltemos aqueles que seguem trilhas inventadas no musgo, nos caminhos que só os bichos mágicos conhecem. Aqueles que conversam com o mundo em linguagem de vento e pedra, que reinventam a verdade utilizando os fios invisíveis do gesto. Celebremos o Autismo, e reconheçamos, por fim, que o autismo não é ausência — é presença em outra frequência. E quem se afina com ela, ainda que por um instante, descobre que o mundo é mais vasto que o mapa, mais fundo que o costume e mais bonito do que o nome das coisas pode alcançar. Há beleza demais nos cantos onde ninguém costuma olhar.