sexta-feira, junho 24, 2022

E lá estava. Sentado numa das centenas de cadeiras estofadas do auditório. Escola particular da cidade. Garbosa e elegante, bem sinalizada e limpa. Imensa. Era o dia de receber os familiares, e celebrar a sagrada e santificada instituição esculpida pelos parentes. Recrutados pais e ornamentadas progenitoras, esperavam sentados ao lado dos filhos pela cerimônia. Os herdeiros ao celular, e lá estava eu, calvo, cândido, alvo e caucasiano. Mais um privilegiado que dirigiu seu veículo até a escola. Não havia discrepância. A disposição cênica do local era constante, uniforme, como um jantar na Berlim de 1930, onde correligionários bajuladores de Adolf o cercavam lisonjeados da situação. Pais e mães, avós e irmãos. Cônjuges, patroas, senhoras e sinhás. A platéia era o escárnio de um Brasil melancólico. 

As palavras do mestre de cerimônia eram murchas e delongadas, como se batizasse-nos catolicamente. Como no fatídico domingo de Páscoa, parecíamos apóstolos recebendo a vida nova de um Cristo ressuscitado, e toda aquela desalegre atmosfera lotada de arrependimentos, culpas e penitências. Afinal, era uma escola. E todos éramos cristãos. Escutei o homem que engrenava o evento. De voz mansa, como um padre germânico, louvou a família e suas escalações, esquecendo-se talvez acidentalmente, das possibilidades reconstituídas, homoparentais, homosexuais, inférteis, informais e dessemelhantes. Enaltecíamos, portanto, a tranquilidade de uma linhagem anacrônica, cautelosa quanto às contingências humanas. Éramos o retrato daquele auditório. O discurso adequava-se magistralmente à realidade daquelas crianças. Não poderíamos proclamar a fantasia, poetizar a existência e falar a língua das borboletas, para as formigas. Jamais entenderiam. 

Olhei para trás e estavam todos mortos. Eram cadáveres inanimados que esperavam pelo fim daquela festa. Que almejavam o sossego de suas casas, num país ainda pandêmico, isolado e selvagem. Sem máscaras, estávamos seguros pelas muralhas da escola, e ainda tínhamos de prestigiar o talento dos alunos, que subiam ao palco para executar canções decoradas. Cabisbaixos ao violão ou ao piano, expressavam sua macilenta existência, e cantavam a insuficiência daquele ambiente. Púberes e curiosos, que precisamente cabiam naquele educandário. Seus mestres eram homens e mulheres brancas, casados e constituintes de uma respeitável categoria. Capazes e indicados para ensinar aos pequenos os mistérios da química, os valores humanos e a impecabilidade da aritmética. Bhaskaras, cinemáticas e condutas. Tudo ali, descosturando a humanidade latente de jovens sujeitos. A Tábula Rasa, de Aristóteles, preenchida pela negação da realidade cultural. Entulhada pela insuficiência da diversidade, e enfeitada pela intimidade com o análogo, nunca com o oposto e o dessemelhante. Aqui todos são iguais. Buscamos identidade, conformidade. E mesmo que em profissões diferentes, concursados ou empreendedores, carregamos a palavra de Cristo e a poderosa branquitude endinheirada. 

Queremos que nossos filhos conheçam o país, mas não tanto. Não havemos de conglomerar e confundir. Uma rápida passada pelas revoltas e lutas populares, um professor de história que pareça diferente e alguns atos caridosos, livra-nos de um cálido e impiedoso inferno. Tamoios, Palmares, Mascates e Malês. Balaiada, Sabinada, Praieira e Cabanada, era tudo tão longe. Tudo tão passado. 

As escolas particulares são covis. Fantasmas desnorteados em meio ao camelódromo da realidade. Vencidas e convencidas por um país iníquo, que persiste numa danosa segregação. Preparatórias aos vestibulares e concursos, aeroportos, bistrôs e condomínios. Jamais à veracidade cultural, étnica e política. Em tempo algum à diversidade sexual, e à integração dos discordantes e desiguais. Somos a massa do mesmo bolo, a água do mesmo copo. E ninguém anda bebendo-nos. Não hidratamos mais nem a nós mesmos.