quarta-feira, setembro 15, 2010

Ô u

Certezas são celas
Comidas em cru
As frases têm gozo
Textura de angu.
A regra é nojeira
Lotando o menu
E o Silva romeno
É cu.

Chorar é verdura
Risada urubu
Inveja da mesa
Rodeando o peru.
Pensar é matéria
Trepar é tabu
A roupa é enfeite
Do nu.

Trecho

Outra madrugada ao lado dos garis. Chegava em casa no horário em que eles limpavam as ruas. A cidade é como um salão de carnaval. Após o dia que passa, a noite que ocorre e um pincelar de madrugada, as ruas amanhecem imundas. Limpar calçadas, sim, é tarefa digna. Esfregar o que não é de ninguém e ao mesmo tempo é de todos parece algo merecedor de algumas gotas de suor. Visto que a utilidade não me conquista, tampouco a conseqüência, nada explica-me o por que de se limpar a cidade. Nada de novo, a mesma imundície. O ápice da limpeza ocorre no desaparecer dos seres. Nos minutos em que apenas eu, os garis e alguns bêbados perdidos, habitamos a cidade, pode-se dizer que o paraíso é alcançado.
Acordar é despertar à insanidade da própria natureza. Saber-se louco é ter os olhos abertos. O convívio com os sãos torna pequeno o grande homem louco. A obrigação da sanidade, o afeto por seres cabíveis e comedidos, tudo isso pode ser a sepultura corrosiva da loucura. A caminhada, a corrida, a moral enrustida em trajes de gala, sorrisos e cumprimentos, camuflam a maligna insanidade que há em cada ser. O injusto esconderijo de quem foge aos fatos do mundo é a antítese sincera dos que ao mundo esperam ação, são agidos, guiados e apaixonam-se por cada pedaço que nele existe.
O dia teria sido cheio se não fosse o sono tardio. A madrugada fazia-me aceito, entrosado com a gama de insanidade que na esquina adormece. A velha sinuca, os casos perdidos, homens que, assim como eu, sobrevivem aos apertos de mão dos sábios artesãos das vidas. Eu era isso e mais um pouco. Tão pouco que nem mais poderia saber o que realmente era. Pensava existir, não ser contingente, agradar alguns, maltratar a outros. E o que mais afinal é estar vivo senão presenciar sorrisos e choros, gargalhar e pedir socorro aos restos de racionalidade que ainda infeccionam o cérebro? Sentir-se é enganar-se. Enxergar é ser cego e confiar no olfato ao atravessar a avenida de uma segunda-feira. Preferia as calçadas vazias das madrugadas. Não gostava dos carros, nem sequer almejava guiar algum. Não queria rodas, somente as pernas. Não tinha preferências, e isso só cabe aos loucos. A escolha é a eliminação de algumas possibilidades. É optar entre o choro tardio e o choro momentâneo. É morrer na estrada que vai e seguir a pista que vem. Isso é jeito de se viver?
A atribuição de inteligência me é cotidiana. Que medo trago dessa responsabilidade. Nunca fiz um prédio, tampouco resolvi uma equação. Isso é inteligência e não me venham com divisões científicas. Criações que amenizam a ignorância dos insanos, fazem dos sãos os verdadeiros detentores da verdade. A matemática e seu caminho escuro que no final mostra outro caminho, a vontade de numerar, encontrar, desvendar, nunca me foi concedida. A capacidade de erguer um prédio, a assustadora aptidão à inutilidade útil, calculam-me desprezível. Sou resto, produto falho e desagradável de um conjunto fechado. Meu talento? Desperdiçá-lo por entre varreduras e caminhadas noturnas. Minha inteligência? Não tê-la.