quarta-feira, agosto 31, 2022

Sérgio Buarque de Holanda, o "homem cordial" ou a dissimulação do brasileiro


Há muito compreendemos o que o nos quis dizer o historiador paulista. Nada havia de aprazível, ameno e terno no "homem cordial". Contava-mos sim com a aproximação etimológica de um convincente latim. O cordios, vinha do "coração". Agíamos e interpretávamos a história, os episódios e as impressões com a ingenuidade dos afetos. Com credulidade e talvez inocência, preferíamos o coração para dissimular as relações profundamente violentas a que estávamos habituados. O que Max Weber chamara de "Ética do Trabalho", em terras brasilis havia edificado-se como a Ética da Aventura. Conceito criado por Sérgio Buarque ao exemplificar essa relação muito pouco racional, e bastante amistosa. Mesmo que existente nas dependências e associações mais perversas e parasitárias. O explorador e o agressor poderiam facilmente nutrir avassaladora camaradagem e afeição pelo explorado, fazendo-o quiçá perceber sua degradante condição. É o que, maliciosamente faz o brasileiro comum. E há muito. Assim o machismo desembrulha-se como divertimento, a homofobia evidencia-se pela chacota e as intolerâncias e hostilidades contra a cor da pele, maquiam-se por entre desprendimentos, isenções e brincadeiras. 

 

A eleição de 2018, suas anterioridades e anteposições trouxeram-nos apressadamente o passaporte para a efetivação de um novo "homem cordial". O que vinha do coração e dos afetos, é prontamente disposto à frente de toda e qualquer racionalidade, agora em detrimento da afirmação de um homem que não discute trivialidades, que não liga para as agressões, rejeições e violências, mas que é violento, descomedido e agressivo. A provocação potente e a visível hostilidade são acortinadas e celebradas por trás de um véu bordado em conceitos enganadores como espontaneidade, simplicidade, desconhecimento e desembaraço. A denúncia ao ultraje seria, portanto, tratada como vitimização, ou com um pouco mais de graça, apelidando a conduta de "mi-mi-mi". Era outra vez o "homem cordial" mascarando conflitos e fortalecendo o patrimonialismo.

 

Estamos predestinados à tolerar a exploração. Talhados à reverenciar relações abusivas e celebrá-las como espontâneas, genuínas. Dos entregadores de comida às empregadas domésticas. Das mulheres, dos cotistas, índígenas, negros e miseráveis, aos ribeirinhos e trabalhadores sem terra, há sempre um cordial e simpático amigo que os governa, e os afronta publicamente, em detrimento de uma relação conveniente e saudável. O mercado, a globalização, os pomos amargos de um capitalismo excludente mas necessário. São tantas alegações e teorias, justificativas e pretextos. A esfera política foi invadida pelas pautas oportunas e pertinentes ao velho "homem cordial". O presidente afasta-se da responsabilidade de um dirigente, da sensatez de um líder, e atira-se intrépido na informalidade de um genérico cidadão, de um despretensioso e reles sujeito.

 

Enquanto seus adeptos, simpatizantes e até os sonsos imparciais, puderem aplaudir a farsa de um brasileiro dissimulado, dilataremos nossa infinita discrepância a um lugar inspirador, justo e fértil. Enquanto a graça e a naturalidade esconderem as feridas mais profundas de nossa comunidade, continuaremos a conviver com o tresloucado raciocínio de que nossa ditadura foi benéfica, e de que naqueles tempos, não havia a usurpação do dinheiro público. Gilberto Freyre seguirá vivo e afirmando que nossa escravidão foi branda, demonstrando um racismo lírico, piegas e romanesco, como se não houvesse sangue, lágrima e dor nos corpos negros.

 

O brasileiro é dissimulado e gosta de sua própria falsidade. Reverenciamos a dominação masculina às mulheres, quase sempre sorrateira, indireta, e colorida pelas tintas do amor e do carinho. Festas, opiniões e símbolos, o brasileiro é um malicioso perpetuador das dores. E precisamos, senão no almoço da família, ao menos na política, varrer o impostor cordial para longe do poder. Ele anda inventando até que a liberdade de expressão o alforria das condenações pela conduta intolerável e hedionda. O "homem cordial" ignora os dados, as pesquisas e o jornalismo. Não lhe interessa que se noticie a sua crueldade. É alienado de si, e não há pior alienação. Exceto para a arte. Mas bom… disso o "homem cordial" não entende nada.



quinta-feira, agosto 25, 2022

Bolsonaro não é gay

Jamais a mim pareceu absoluta veracidade o fato de que a aversão caracteriza alguma afinidade, paixão ou tesão. O intolerante teria assim, a magia de um conflito, algo finamente psicanalítico que pudesse explicar sua violência, seu sectarismo e sua estupidez. Fugiríamos do fato de que odeia, assim como ama, utilizando-se de certezas grosseiras, indelicadas e principalmente, confiando e valendo-se de argumentos imprestáveis. 


Mas algo me chamou a atenção. Parece-me talvez um sinal de que o amaldiçoar dos comportamentos e desejos alheios, escorre por entre os dedos curiosos, entusiastas e até encantados do tirano. Pelo décimo segundo ano consecutivo, somos o país que mais assassina transexuais no mundo. A rejeição familiar, a marginalização econômica e a impunidade machista dos criminosos, empurra-nos ao fundo do poço. Por outro lado, segundo os sites especializados no assunto, somos também mundialmente, o país que mais consome "pornografia trans". Temos um conflito de informações ou uma prova inequívoca de que a agressão sucede o arrepio? O tesão? Parece que tem gente demais maldizendo o carnaval, enquanto as ruas seguem lotadas de foliões, brilhantes fantasias e mijos na porta das lojas. 


O país de Bolsonaro é o campeão em momentos eróticos com transexuais, enquanto domina, humilha e afronta homens que desejam homens e mulheres que, por um tropeço genético, nasceram com um elemento trocado por entre as pernas. Essa é a verdadeira liberdade de Bolsonaro. A anarquia racional, a barafunda humana, a esculhambação de uma república. Querem o assassinato e a segregação de quem, há dois minutos, lhes serviu como subalterno, como inferior. Assim raciocinam também com as mulheres, posto que em nenhum momento lhes atribuem valores acima dos que assistiram por toda a vida em suas tradicionais famílias brasileiras. Aqui a mulher, ao homem instintivo, carrega nos seios plenos a existência incomodativa.  O motivo pelo qual a travesti torna-se perfeição. 


"Brasil não pode ser país do mundo gay. Temos famílias.", disse o parco presidente à nação que já persegue homossexuais naturalmente, como se maldição demoníaca fosse, tal e qual a cruel caçada aos albinos no Malawi. País miserável e rudimentar do sudeste africano. O fato é que não somos um país do mundo gay. Somos um país que, também miserável e rudimentar, vergonhosamente ainda massacra dois homens apaixonados ou garotos afeminados que desejam não somente sobreviver, mas existir, como pessoa. Gozar.  E reaprender.  Ensinar-nos insistentemente a multiplicidade do amor. 


Disse-nos o RedTube que essa obsessão reflete também em masturbações às escondidas ou em festas privadas com travestis e transexuais. Fato que não devia causar-nos constrangimento, a não ser que protegêssemos e zelássemos por quem nos encanta sexualmente. Mas feito o samba, o funk e a religião africana, a orientação homoafetiva é tratada nas Terras Brasilis como marginal, periférica, delinquente. E assim o país que se esconde em personalidades como Bolsonaro e sua corja, parece convencer-me de que a aversão é o resultado de uma incrível atração. Mas parece somente. Porque pouco me convence. Afinal, onde muito se critica, muito se deseja? Onde muito se agride, muito se fantasia? E onde tanto se mata, muito se é tentado pelo tesão? Não é razoável para mim. Parece-me pouco. 


Bolsonaro não é gay. Não é afeiçoado à vida a ponto de subverter nada que é banal, como a heterossexualidade. Não possui a capacidade abstrata de insubordinar-se à criação estúpida e ao modo descortês com que trata os discordantes. Bolsonaro não ama nem as mulheres, nem os homens. O exceptuado capitão ama, quiçá, suas certezas belicosas e seus argumentos tresloucados. Não carrega consigo a capacidade de ser ardente como Ney Matogrosso, deslumbrante como Pablo Vittar. Não chegaria perto da bravura de Laerte, da sapiência de Renato Russo ou da maestria artística das Dzi Croquettes. Bolsonaro não tem a sabedoria e a aptidão humana para gozar com um homem. E sua trupe não há de compreender o orgasmo, a libidinagem e a safadeza dos corpos e das almas. No máximo, lideram a imoralidade no trabalho, no gabinete ou na frieza dos afazeres de suas funções. São indecentes onde não deveriam. Degenerados e escandalosos de forma apolínea, e nunca dionisíaca como necessita o princípio vital humano.

Todo Bolsonsrista é um infeliz, que disfarça de si a própria imoralidade. Esta que faz-nos música e não rocha. Que dobra-nos como tecido e não como folha seca. 

Jonas Lewis da Costa Franco

domingo, agosto 07, 2022

Solidão

 


Fui um garoto sozinho. Nunca desamparado ou desfavorecido. Há de se compreender a diferença. Sozinho. E mesmo se no meio de muitos estivesse, desabitavam-me. 

A solidão não é um caminho. Não é um sentimento. Não chega de repente assim, como a ira ou a dor. A solidão não dói. É como um cheiro de mar, que mesmo longe de qualquer litoral, pode-se perceber. A solidão é um sonho persistente. Um engano na própria capacidade de sonhar. Constante e permanente como a existência. A solidão tem sua própria respiração. Incansáveis pulmões que inflam-se como lagartas bem alimentadas. Envaidecem como um pingo grosseiro de chuva caudalosa. 



Não sei bem no que pensava enquanto caminhava nas pedras pontudas da rua vazia. Acuminadas e negras, açoitavam os pés imaturos que buscavam alguma serventia no passeio. Quando se é solitário, tudo vira poesia. Quer-se a companhia das conjunções, a intimidade com a desistência das frases. Recordo-me pouco do que não fosse solidão. O repouso das tardes em que não havia ninguém. A feroz imaginação que engendrava inutilidades, e monstros. A destruição que sempre nasce do exílio, assim como a construção rebenta do isolamento. Incoerências que enganam a ciência e caloteiam a lógica. Tudo para zombar dos sujeitos e torná-los relevantes. 



Fui um criador de temores, e há tanto de encantador no desassossego, que pude enganar alguns desavisados. Não havia em mim alegria. Havia talvez o entusiasmo de intercalar minha solidão com alguma necessária gozação. Havia a urgente deserção do medo. A efêmera utopia de uma alma festiva e radiante. Era um dissimulado. 



Acostumei a olhar o chão e nunca o céu. Fugira da banalidade das estrelas, e da infante curiosidade pelos planetas. Fui um garoto dos assoalhos, dos pavimentos e das gramas. A solidão fazia-me pousar o queixo sobre o início do pescoço. Eu gostava era de enxergar a ponta dos pés, os joelhos. A pressa das formigas. Parecia que ali estavam as frases abandonadas, como se o chão hospedasse o que foi calado, a resignada palavra que por um momento, parecera perfeita, cabível. Somos o resto das coisas não ditas. O subproduto de um universo calado, esquecido e solitário. O que perversamente fugiu de uma folha amassada, de um poema não fecundado. O que escapou pela fresta de uma frase engolida. O mundo real é a inconveniência que perturba a placidez do inexistente. E o inexistente é o sustento da solidão. 



Eu continuo o mesmo garoto. Não há evolução ou metamorfose que não um conjunto de percepções, costumes e escrúpulos. Aprendi alguns segredos e atinei às soluções. Métodos, etiquetas, caminhos e prescrições. Alfabetizei-me no esquecimento do chão, na rejeição às formigas. A gente aprende até a somar os números, e dizem-nos que é importante. A gente vira o não dito, e as palavras caladas abarrotam as gavetas do corpo. O corpo do mesmo garoto. Solitário, como as palavras esquecidas que guarda com afinco. 



Não há prazer algum na solidão. Não há descoberta. O deserto anseia por água, após conhecê-la, e talvez todo garoto seja um deserto ávido, impaciente pela companhia do outro, pela divisão de sua jovialidade. O garoto se distrai, compete, quer o vínculo. Ainda não lhe cabe a harmonia do sexo, a afinidade apaixonada do romântico ou a sensatez monitorada de um adulto. Mas o garoto inventa a realidade num carpete. Sábio, foge como louco da solidão. 



Hoje eu não sei onde guardar minha solidão. Não há garoto, nem carpete. De gavetas lotadas e tempo escasso, percebo que solidão não se guarda. A solidão é cola, encalço. Pegadiça como mel. Com a solidão a gente faz um pacto, que eu e ela descumprimos todos os dias.