terça-feira, setembro 28, 2021

O quase morte

Retirei a vesícula.

Estou na sala de recuperação. Coisa branca, inóspita.

Monitorando por alguns bipes, trouxeram logo o item de sobrevivência mais importante do século: um Samsung branco cheio de aplicativos, pertencente a mim.


A vesícula é como o Sérgio Mallandro. Até tem lá sua utilidade durante um tempo. Mas quando começa a incomodar... Tem que extirpar pra sempre.


Simples procedimento de não mais do que trinta minutos. Meu avô, quando operado, saiu da sala de cirurgia direto pro T3. No mesmo dia estava em casa assistindo à realidade crua do Cidade Alerta, com o Datena. Talvez fosse melhor a vesícula. 


Meu caso foi um pouco diferente. Uma arritmia pós cirúrgica me manteve por aqui. Em época de pandemia, a pernoite no hospital é como descobrir que casou sem querer com o Goleiro Bruno. E que está pedindo divórcio e pensão.


Dez médicos na volta, e o diabo da Adenosina. Medicação na seringa, duas vezes espetada em mim, a fim de que voltasse o coração ao ritmo corriqueiro.

Há na morte um túnel iluminado, no qual pouco se pode enxergar. A luz deixa os olhos miúdos, mas atentos. Disse algumas tolices, resultantes da anestesia. Não que as evitasse em estado normal. Os médicos riram, todavia nervosos. O humor é um belo termômetro para sabermos quais as chances de sobrevivermos, e enfrentarmos mais um  Natal no shopping lotado, ou irmos à Brasília numa manifestação pelo fechamento do STF, e pelo Legalize da Cloroquina.

Eu quase pedi o tônico Bolsonarista aos médicos. Vai que pudesse me salvar naquela altura. 


Mas cá estou. Desperto e com batimentos sólidos, já na casa dos oitenta e poucos por minuto. Ainda na sala de recuperação, cercado de enfermeiros cordiais, amáveis e competentes. Sobe-me à boca um enjoo decorrente do suco de maçã. E fica a vontade de ir pra casa. Não a dos anjos. A minha mesmo.

quinta-feira, setembro 16, 2021

E fora do storie?

 Fora dos Stories, você está bem?


Há de se considerar valiosas as palavras da teologia. Vindas ou não do próprio cristianismo, com Agostinho, Boécio ou os profetas, o ensinamento cristão resiste e coordena parte de nossa vontade e força vital. Mas jamais esqueci uma considerável frase de Maquiavel em O Príncipe: "O tempo lança à frente as coisas e pode transformar o bem em mal e o mal em bem". O filósofo italiano que defendia a bondade, a caridade e a moral como essenciais atributos do líder político, talvez previsse que a positividade e a quebradiça confiança de nossa geração, virasse em pouco tempo, estupidez. Alguns anos de psicanálise, filosofia, vastas ferramentas estóicas e, mesmo assim, esbarramos na mais rasteira auto-ajuda que já existiu. Afunda Dale Carnegie, surgem as páginas de frases motivacionais, e piadinhas com indiretas. Acertadamente dissipam-se Augusto Cury e Lair Ribeiro, dando espaço aos stories de Instagram e ao "Arte Sutil de Ligar o Foda-se". 


Não há como classificar o ser-humano afastado de sua rede social, tampouco do que nela exibe, ou do que nela usufrui. Somos os indignados digitais, que muito pouco agimos e criamos. Constituímos uma nova espécie de Homo Sapiens. A realização do indivíduo é a auto exploração e não mais a aventura alheia ao próprio corpo e mente. Somos "memes", que exalam solidão até mesmo quando acompanhados. Na mesa do restaurante, na lancha, com os cães no parque ou no meio da festa, somos a afirmação da completude que jamais teremos. E assim carregamos até anedotas sobre nossos defeitos, de maneira que representemos consciência e facilidade em revelar e conviver com as próprias fraquezas e imperfeições. Trapaça. Deteriorada estratégia da propaganda. Esperteza receosa e covarde, como mentir à terapeuta que o carro enguiçou, burlando a consulta.  


Demonstramos e induzimos a nós mesmos que somos muito pouco fracos, e aceitamos esquecer os nossos super poderes humanos: a apatia, a vulnerabilidade, o inconsciente e a fragilidade. O relacionamento, exempli gratia, tenta safar-se de uma colcha rochosa, lotada de bordões, chavões e estereótipos. A dissimulada robustez da alma e da razão, assalta de modo travesso o arrebatamento das paixões e a inconsistência dos sentimentos e ações, que tornam a confluência de dois amantes, algo vivo, irrequieto e desmedido. Há sentenças inabaláveis e convicções assentadas, numa campanha dramática de que conhecemos quem somos, e de que admiramos nossa maturidade e equilíbrio. Manifestamos ironias, anunciamos segurança e compartilhamos chacotas, de modo que todo suplício humano, cheire como perícia, autoconfiança. 


Afastamo-nos aqui do velho lugar-comum: Nas redes somos felizes o tempo todo. Fora dos Stories, não estamos tristes. Fora dos Stories estamos bem piores. O "empoderamento" a que fomos coagidos, reduz-nos a decoradores do mundo. Afasta-nos a tristeza causante, impulsionadora. Afugenta-nos desprovidos do verdadeiro abatimento, que empurra-nos ao dia seguinte como arte, e retira-nos o feitiço da poesia. Somos práticos, sensatos e atinados. Fingimos confiar no amor a nós mesmos, assim como há tempos fingimos preocupação com guerras civis do outro lado do planeta. Direcionamos ao próprio umbigo a mira de nossa falácia armada. E alvejamos cada vez mais nossa naturalidade depravada, insana, corrupta, utópica e sonhadora. Perdemo-nos de Nietzsche e perseguimos o Übermensch errado. Quem dera estivéssemos tristes. Fora dos Stories estamos arruinados. 


Jonas Lewis da Costa Franco