sábado, janeiro 30, 2021

"Eu organizo o movimento. Eu oriento o carnaval."

 São as palavras de Caetano em "Tropicália". Música que dá nome ao arrebatador e impetuoso movimento que abalou o país entre 67 e 68. Gal, Tom Zé e o maestro Rogério Duprat. Nara Leão, Torquato Neto e também o compositor e poeta Rogério Duarte. As distorcidas guitarras e a psicodelia invadiam o barquinho bucólico da Bossa Nova, desvitalizando as posições tradicionais e o conservadorismo nacionalista que sempre dominou a música popular brasileira. De primeiro, não há de se considerar a sonoridade, os arranjos, tampouco a linguagem. Responsabilizemos primordialmente a arruaça, a desordem, e uma tendência terrorista de exposição artística. A disparada inabalável pra cima de um muro robusto e consistente, como se derrubar os tijolos fosse a única saída possível para um cenário ocioso, acomodado. Eis o motivo da arte. A subversão e a concepção de um novo encadeamento. Nova gramática para que não bata as botas o idioma, e novas rodovias para que não renuncie o artista à sua incontível viagem. A arte é extremista e mesmo que delicada, graciosa e parnasiana, consigo carrega o poder de fragmentar, danificar e principalmente, infringir. Parece-me que quando não desvia, quando não devasta, é pura repetição de técnica, aperfeiçoamento, exercício. A arte tem de resplandecer. Desorganizar e transtornar para recompor.

A Tropicália foi nova, curiosa e original a ponto de articular a nação. Monstros sagrados da composição e da literatura, vozes irregulares e divergentes, frente ao país que engolia calado e assustado suas exigências. As letras palavreavam com Oswald de Andrade e outros poetas concretistas, elevando as frases que simplesmente acompanhavam melodias à verdadeiras conjunções intelectuais de um Brasil arcaico com um país moderno, querendo abraçar o mundo vestindo colorido e pensando em discos voadores.
Havia sexo, corpo e liberdade. Mas havia também a repressão e a própria identidade ainda moderada de um ambiente ameaçado. Che era executado na Bolívia, Costa e Silva assumia em março de 67 e o país elaborava uma inexperiente maneira de lidar com a expressão, com a manifestação e com a criação.

Caetano e Gil, célebres e afamados merecidamente, parecem ter dado o primeiro grande passo. E desconsiderando talvez outros gênios menos prestigiados e influentes como Arrigo, Macalé, Itamar Assumpção e os Mulheres Negras, a MPB foi pautada por um conservadorismo anti conservador. A liberdade que libertava das grades mas jamais das correntes. Marchamos atados por muito tempo, e ainda relutamos em compreender que os anos 60 no Brasil, foram menos antiquados do que os 50, mas muito menos revolucionários, radicais e ousados do que nossas capacidades e contingências permitiriam.

A MPB jamais foi obsoleta, e talvez tenhamos sido abençoados a receber Chico, Djavan, Jamelão e Paulinho da Viola. Milton, Caymmi, Baden e até popularescos e difundidos como Lulu, Tim Maia e Guilherme Arantes. Todos com deslumbrante participação em uma música nova, tenra e original. Por vezes brilhante, genial e inigualável.
Sempre conservadora. Sempre tradicional. Não foi regressista e impositiva, cruel e inanimada, mas foi cautelosa e filosoficamente comportada.

E não parece ter vindo do Jota Quest a intenção de quebrar alguma parede. Os Paralamas não arruinaram a moral e a cena Indie dos festivais nunca desorganizou a lógica. Os bravos Titãs foram destemidos e feriram a religião com a porrada "Igreja". O Camisa de Vênus assustou com o nome, com a sonoridade e com frases pujantes e descaradas. Mas quem "organiza o movimento, e quem orienta o carnaval", é o Funk. Assimilado na rotina do jovem brasileiro, o funk é maldito por natureza. Ofensivo como a humanidade, impiedoso como a existência e indecente como nosso pensamento, o produto das favelas invadiu o mundo, revelando a insanidade de nossa relação com o crime, o sexo, a mulher, o dinheiro e a fama. Do batuque marcante do Maculelê, ritmo originário da Bahia, com forte influência de uma África escravizada, o funk incorporou os atabaques e tambores, ganhando o espaço em qualquer festa realizada no país.

Iletrados garotos desprotegidos fazem o país curvar-se diante de dissonâncias e psicodelias. Não há música no país que carregue tantas características contemporâneas e principalmente livres. The Doors, Emerson Lake and Palmer, Kraftwerk, Triumvirat, Beatles, todos dividiam a mesma particularidade: eram desobrigados e inconsequentes. Irresponsavelmente belos e descompromissados com estéticas criteriosas e normas técnicas. Há no funk desses garotos a audácia social de um país abandonado. São insolentes quanto à burguesia, mesmo que a burguesia consuma suas criações em festas regadas à Champagne e maquiagens Guerlain. Sua poesia é também concretista, e depois de 50 anos, parece haver soberania e licença para flutuar a palavra, e atingir em cheio a ofensa, a obscenidade e a blasfêmia. Por vezes infratores e delinquentes, infames e perversos, como nenhum Caetano ou Gil ousou parecer. O funk arqueia as costas do conservadorismo e incomoda a velha e enfadonha esquerda politicamente correta, que tenta combater desprovida de armamento efetivo, a verdade latente das letras selvagens e despretensiosas. O funk chicoteia a velha moral. E mostra ao mundo, que assim como o mal falado Rock'n Roll e o marginalizado Samba, quando cria-se algo perigoso, toda sociedade arregala os olhos e aponta valendo-se de argumentos falaciosos, como pobreza linguística, carência de harmonia, falta de estudo ou erudição.

Tenho algo a dizer: há mais de Heidegger, Wittgenstein, Freud e Foucault no funk, do que em suas estantes de livros posicionadas atrás da câmera para compor o cenário de suas reuniões no home office. Há mais liberdade feminina, Angela Davis, Maria Rita Kehl e Simone de Beauvoir no funk do que em encontros universitários ou discussões no almoço da firma com sua colega engajada no movimento feminista (Não que ela não deva ser escutada). Há mais riqueza musical e inventividade rítmica no funk do que em todas as bandas barulhentas de rock da sua cidade.

O Funk é o túmulo da acomodação. A continuação perversa e necessariamente pornográfica da Bossa Nova. Um sopro de Henry Miller num mundo fantasiado de auto ajuda e espiritualidade arenosa.


sexta-feira, janeiro 15, 2021

Anitta, Neymar e o fracasso da arte

O “menino” Neymar é amigo de Luciano Huck. Não do Hang, do Huck. Mas bem que não me surpreenderia uma estátua da Havan em frente à festa imoral do garoto. Camarada de Gabriel Medina, Thiaguinho, e de outros enfadonhos e limitados “parças”, Neymar é o arquétipo de um arruinado Brasil. O embaixador de uma geração cansada e cansativa. O arauto de homens e mulheres que esquivam-se temporariamente da casa dos pais, e em meio à cruel e mortífera pandemia, passam o fim de ano em Jurerê Internacional, num deck frente à praia, escutando Dj Alok, saboreando sublimes Skol Beats e contraindo o vírus, que em seguida levará familiares e desconhecidos a UTIs em situação preocupante. De que importa afinal o honesto, o virtuoso, o justo, se nada disso dá boas postagens no Instagram? 

 

O documentário de Anitta na Netflix é magistral. Antropologicamente magistral, se o caso é compreender um mundo inconsistente, ralo, aguado. E talvez, principalmente, um Brasil repulsivo, pretensioso e histérico. Anitta comanda uma trupe de parentes, agentes e empregados, a quem dedica tratamento altaneiro, arrogante e grosseiro. Sempre com a escusa de uma pressão profissional, de uma personalidade centralizadora e de uma imensa vontade de que tudo aconteça com perfeição. 

 

Anitta é amiga de Neymar. Neymar talvez tenha comido Anitta. Que por sua vez, insiste em declarar sua independência e liberdade sexual a cada dez segundos de documentário. O calabouço quando ainda assusta, faz o enclausurado declarar-se feliz e liberto. A dissimulada soberania sexual de Anitta é como as malas Louis Vuitton de Neymar, quando chega com a delegação para a partida. Seus fones, e sua malandra caminhada até o vestiário, celebram a cafonice dos apartamentos em Camboriú, das férias em Aspen, e do tal deck atolado de bombados e gostosas covidentas, fotografando a angustiante existência em Jurerê Internacional. A morte do futebol e da música. 

 

A inspiração é um cadáver, e a instrumentalização humana é gelatinosa, precária. Consegue o curioso fato de não depositar em mim tampouco a ávida inveja de uma vida de luxos, badalação e dinheiro para dar e distribuir.

 

Anitta e Neymar deveriam casar-se. Rei e rainha numa possível monarquia desse país infundado e indelicado. Em Janeiro teremos novos defuntos. Alguns vítimas dos netos e filhos que retornaram do Reveillón festivo, e outros, os de sempre, ainda vivos, como Neymar, Anitta e seus “parças”. Lotados de uma vida desabitada, e entorpecidos pelo vício letal das aparências.

Sexo, propaganda e plástico

Quem me conhece, sabe. Sou um incorrigível amante das particularizações da indústria. Daquilo que vem logo abaixo da alcunha, da marca. A frase ou qualificação que diferencia um produto do outro. Que faz um reles xampú tornar-se um "reconstrutor completo, sem parabenos e com micro cristais de pró-queratina". A poesia da marca. O sofisma publicitário, que categoriza o produto como especial, singular e hiper-direcionado às causas específicas, aos esmiuçados problemas e situações. O subterfúgio, a enganação e a tramóia ardilosa que aconchega o ávido consumidor às suas pueris necessidades.


Hidratantes corporais e cremes esfoliantes. Géis, capilares, fixadores, antibacterianos e finalizadores. Pré-banho, pós-banho, durante o banho e enriquecidos com óleos essenciais de andiroba, que garantem a maciez natural da pele, atingindo camadas mais profundas e garantindo resultado por mais de 48 horas. Com ácido, sem álcool e rico em proteínas da aveia. Cereja, avelã, chá verde, pitaya e urucum, todos enriquecem o frasco, num estratagema confuso, que supõe o desconhecimento do consumidor, e a perturbada confiança quase cega em uma fraudulenta especificação.


Nessa semana, em meio à enfadonha pandemia, atentei-me na drogaria ao espaço reservado aos preservativos. Camisas-de-Vênus, camisinhas, chame como desejar, não há talvez grupo mais subdividido e extraordinário para um apaixonado como eu. Essa desumana borracha, que apesar de necessária, e por vezes, imprescindível, escuda e ampara desgostosamente as trepadas que por aí sucedem, é artigo de luxo quando se trata de qualificações e especificações. Afora dos sabores que o látex tem oferecido às sedentas bocas, vulvas e cus, historicamente sem paladar, milhares de tecnologias obscuras são concedidas na prateleira mais impudica da farmácia.


Morango, framboesa e amora. As frutas vermelhas já são eruditas, clássicas coadjuvantes das categorizações. Chocolate, uva, melancia e tutti-frutti, relembram instintivamente os carrinhos da Kibon na beira da praia. Como numa regressão à mais pretérita meninez, a camisinha era agora um ChicaBon, um erótico Frutilly. E como são fecundas as possibilidades, avistei um pouco mais abaixo os sabores "Café, "Caipirinha" e "Churros". Um passeio pelo shopping, a visita de um velho amigo ou aquela conversa séria no meio da tarde, que pede o safanão da cafeína para que a alma possa assimilar o ocorrido. O café invade com elegância o sexo. Ou então o boteco, o samba e as cabrochas, pedem uma caipirinha gelada. Drinque genuinamente brasiliano, que pode remeter o coito às Minas Gerais ou a um suburbano Rio de Janeiro. Deveria-se recomendar na embalagem, talvez, a aquisição de alguns bolinhos de bacalhau, para que a experiência torne-se ainda mais intensa.


O "Churros" merece um capítulo à parte. E admira-me que ainda não tenham surgido as variações que a própria iguaria ganhou ao longo dos anos. Fálico, segundo Freud, o terceiro estágio do desenvolvimento psicossexual, em minha época de garoto o churros era devorado ereto. Vertia pelo topo um doce de leite ardente, que por vezes, caía na roupa, deixando nela um borrão característico. Hoje ele cansou. Deitou-se e recebeu um cobertor de Nutella e confeitos. Esqueceram-se da importância humana daquele semi-boquete que pratiquei durante anos nas ruas de Cidreira. Quantas camisetas amareladas, quantas queimaduras no beiço. Pois bem, o churros agora invadia verdadeiramente o sexo. Preocupava-me sobremaneira o modo como era servida a sobremesa, pois é certo que, se no preservativo viesse também o açúcar cristal e a canela, certamente machucaria com cruéis assaduras um dos envolvidos na transa. O atrito deveria ser uma preocupação, nesse caso.


Maçã-Verde, abacaxi e laranja, as camisinhas viraram uma feira. Mas as especificações técnicas também são grandiosos artifícios, que transformam o ato de agasalhar o órgão sexual em uma ousada peripécia. Texturas e tamanhos, temperaturas e poderes mágicos, essa mercadização afronta os limites da lógica e apresenta-nos inimagináveis possibilidades.


Extra-Grande (tamanho que felizmente nunca julguei a mim adequado), e termos ianques como " Skin Sexy Cherry", que além do gosto de cereja, promete a sensação de não estar usando nada, como se negasse o próprio conforto, atestando que seus produtos são uma "encheção de saco". Ou mais apropriado, uma "esvaziação" do mesmo.

Efeito fluorescente e neon, para que talvez o sexo pareça uma festa rave. Sempre tive a esperança de que brilhasse o membro no escuro, e que dessa maneira, não o perdesse numa troca rápida de posição. "Efeito Retardante"! Essa me causa um medo absoluto. O título é confuso e faz parecer que ao colocar o preservativo, começarei a idolatrar vídeos do Olavo de Carvalho e fazer sinal de "arminha" com as mãos. Além de terminar a transa com um austero:

- "Gozei, aí! Taoquêi?"


Sensitive Touch, textura que aumenta o prazer feminino, ponta com formato oval, efeito "Fire and Ice", que altera entre o quente e o frio como chuveiro elétrico de casa alugada na praia. "Elite", que talvez seja indicado ao pessoal que anda de camionete ou Mini Cooper, "Latex Free", para os pobres alérgicos, que até na cópula correm o risco de um fechamento de glote, e o incrível L9P6, que parece nome de personagem do Star Wars, mas é simplesmente uma tecnologia que ninguém sabe pra que serve, e nem o resultado.


O que importa, no fim das contas, é gozar. Mesmo que paguemos um pouco mais. E saber que a camisinha feminina, foi a pior ideia já tida por alguém, depois é claro, dos shows em Drive-In e do Cream Cheese no Temaki.