quinta-feira, setembro 15, 2022

De Férias com o Ex


Não adianta. É axiomático. Sou um eterno apaixonado pela podridão. Obcecado pelo que é reles, depravado, baixo e ordinário. Fascinado pelo obsceno, enamorado das coisas canalhas, indecorosas. Há mais de poesia no indigno, e o que é sórdido e escroto tem maior aptidão e potência para ser belo. As melhores cebolas são, sem sombra de dúvidas, as que caem ao chão e são acidentalmente chutadas para debaixo do expositor. Eis o encanto do esquecimento, a beleza do desprezo e a existência rasteira, que foge aos manuais da perfeição e da plenitude. Como a vida. Como despertar humano. Como a respiração.
 

    

Por entre Hegels, Kants, Renoirs e Saramagos. Imerso na dedicação aos Sartres, Matisses, Confúcios e Heráclitos, pus-me a assistir um reality show chamado "De Férias com o Ex". Não fora o primeiro, posto que tornei-me um fã irredutível e fiel das desavenças e xingamentos praticados em "A Fazenda". Estava ali. Em algum momento da madrugada, eu havia terminado a primeira temporada. Tinha inveja dos corpos. Eram Apolos, Ares, Poseidons e Hércules. De ventres maciços e rijos, límpidos como em desenho. Com lábios encorpados e queixos protuberantes, os homens quase davam-me a coragem para o abandono das comilanças, das massas, caramelos e manteigas. Quiçá fariam-me hastear pesos e encarar-me agachando em frente ao imenso espelho da sala de ginástica. 


    

Se para os gregos, o belo corpo era sinônimo de uma mente brilhante, os rapazes de nosso "De Férias com o Ex" estavam afastados dessa premissa. Ostentavam não mais do que a capacidade de pronunciar as gírias, articular frases prosaicas e empolgar as moças. E não os depreciemos. Eu cobiçava também suas mentes e vocabulários, acanhadas perspicácias e sucintas mentalidades. Eram significativos, indelicados e rudimentares como jamais poderia eu arremedar. Sedutores inabaláveis e belos como os guerreiros medievais de aparentes cicatrizes. Abençoados pelo universo e por suas condutas sadias, atléticas e dedicadas. Uma provocação ao homem comum. 


    

Elas eram livres, independentes e empoderadas. Não menos do que lindas, cada garota carregava consigo aquela malandragem impostora e aquele glamour magnético de uma soberana Anitta. Douradas e curvilíneas, sensuais e animadas, representavam talvez o protótipo de uma neo-feminilidade. Antagônicas ao abuso masculino de um século XIX, eram formosas e ousadas, descontraídas, nuas e desapegadas. Havia contestação em suas condutas e revides em suas palavras. Alinhamento nas coxas e panturrilhas, recheio nos peitos e bocas, além dos relevos e proeminências nos traseiros e personalidades. Ávidas pela diversão e interessadas em uma nova liberdade, soterravam Mary Wollstonecraft com o esquecimento total de suas capacitações para a reflexão e para o protagonismo. Eram o televisionamento da velha e imposta fragilidade feminal, disfarçada e adornada pelos adereços ingênuos da emancipação. 


    

A escassez da sororidade e a ausência completa de uma genuína compreensão sobre os vínculos humanos, fazem do programa a perfeita exibição pública de uma sociedade apressada e angustiada. Loucos pela notoriedade, e ávidos pela multiplicidade dos carinhos e afagos, o programa exibia uma explosão de egos. E de casa, outra vez, eu nutria alguma inveja daquela gente. O mais incrível? Não havia vencedor. Ao oposto de outros programas como ele, "O de Férias com o Ex" não oferecia milhões, veículos, cursos, títulos ou troféus. O prêmio? Superar o nada dos prazeres, das ofensas (geralmente machistas), e das bebedeiras. Hedonismo, egoísmo e abuso. Minha alma apaixonada pela podridão e pelo nocivo, delirava a cada episódio. A reprodução incansável de velhos conceitos e práticas era, inacreditavelmente, a novidade revolucionária de jovens insuficientes, escassos, tolos, mas extremamente felizes e belos. 

 


Talvez nunca tenhamos visto tantas relações abusivas, e talvez nunca tenhamos falado tanto em como evitá-las. A sociedade do Instagram leva mais a sério suas postagens do que sua consciência, e aí talvez esteja o segredo para o novo modo de viver. A geração que esqueceu do amor, desprezou o outro e o romantismo exacerbado, como se a individualidade os fizesse completos, bem acabados. Seguidores de prazeres líquidos. Quantos ciúmes eu carrego desse poder. Já não bastava seus corpos, seus bronzeados? Não há psicanálise que possa vencer a energia jovial da imbecilidade, nem que consiga amansar a minha agonia. Afinal, eu havia escolhido a dor, a percepção e a entrega. 


    

O mais bonito? Não há inteligência alguma em minha escolha. Eu sou um espectador do caos. Um homem enfeitiçado pelas lentes antropológicas da perversão e dos erros, como se realizasse atividade acadêmica dedicada à decadência, ao vício e às taras. "De Férias com o Ex" é agonizante, perverso e maldoso. Há algo melhor do que isso numa sexta-feira à noite?