quarta-feira, fevereiro 01, 2023

Do riso

"O cristianismo é pouco propício ao riso". Assim inicia o capítulo 4 de George Minois em A História do Riso e do Escárnio. Pus-me a relembrar o livro em uma despojada e alcóolica confabulação entre amigos. Lembrei-me também de Bergson e de Kierkegaard, com suas valiosas contribuições acerca da ironia. O filósofo Cícero, que após a queda da monarquia, viveu na conflituosa República Romana, dizia que sobre o riso, todos os estudos eram enfadonhos e chatos. De que maneira então trataríamos da zombaria e da gargalhada com a seriedade filosófica e investigativa de austero percurso intelectual? Talvez seja impossível. Os cristãos que o digam. Por amor ou tédio, o Jeová bíblico criou o céu e a terra. E não há nada de engraçado em tal concepção. Nunca houve. De que poderia gargalhar Adão, ou Eva, que sem malícia alguma, estão nus, jovens e eternamente belos? Habitantes de um perfeito jardim, onde tudo é harmônico, natural e pleno. Não haveria de ter risada possível, tampouco o sorriso de satisfação, posto que nem carência, nem superação foram coadjuvantes em suas existências. A permanente plenitude é o túmulo da jocosidade, e do contentamento. 

Quando entra em cena o nefasto, recôndito nas feições de uma serpente, é que aparece, portanto, o pecado. Desequilíbrio, desobediência e instabilidade. É nesse buraco que brota o riso. É a desforra do diabo, que dá ao homem a possibilidade de enxergar-se fraco, vazio e ridículo. Pode-se rir, então. Por que não haveríamos de zombar desse fantoche esquisito e grotesco, que arrota, defeca, envelhece e enlouquece? O riso insinua-se pela imperfeição humana. O humor é a constatação da decadência, e sincronamente, um consolo. Gargalhar compensa-nos para escapar ao desespero e à angústia, e isso possivelmente já seja um lugar-comum. 

A clamar contra a censura e a favor da liberdade de expressão, uns apontam a desaprovação do humor como o início de um pensamento fascista. Déspota e limitante. Do outro lado, e tal divisão era clara nessa conversa com os amigos, há os que juram defender que, como na vida, no humor não pode-se pronunciar a integridade das chacotas, das ofensas e das provocações. Pela moral, e pela sensibilidade, há de se ter limite, e mesmo com a função purgativa e artística da piada, deve-se calar imediatamente na iminência de violar alguém ou algo. 

Jesus não riu. A bondade carrega simbolicamente consigo a capacidade de abster-se à insensibilidade cômica, jocosa e devassa. Esta satânica paternidade liga o riso à imperfeição, à desvirtuação, e ao fato de as criaturas decaídas, cobiçosas e famintas, gargalharem frente ao sofrimento e à condição humana. O diabo ri de sua própria existência. De sua exclusão. O soberano agente do mal é, invariavelmente, ligado às festas, às surubas e aos bacanais. O tinhoso é pai do carnaval, que já na Idade Média apresentava bufões, asnos e bobos, vestidos grotescamente e movimentando-se de forma estapafúrdia. Essa paródia louca que exorciza e acalma, prevalece nitidamente ligada ao monstruoso, à vadiagem e à falta de sentido. O carnaval sorri loucamente, sem compromisso e desprovido de responsabilidade. Gêneros confusos, obscenidades e escatologias, são o dispositivo cênico de uma festiva fuga à realidade. 

Henri Bergson deixa-nos evidente: o riso é incompatível com a empatia. Há de se preterir a sensibilidade, e castigar os defeitos, as tragédias e as doenças. Se por um lado, é purgativo e exorcizante, atacando as angústias e os poderosos, por outro, o riso comete excessos, poupa culpados e fere os inocentes, visando um resultado incontrolável e geralmente, deixando de lado a capacidade de avaliar os casos de maneira específica e ética. Mostra-nos o filósofo francês que a discussão sobre os limites do humor não é tarefa simples, e não pode ser discutida universalmente. Rir é sempre, como aliás qualquer outra atividade humana, um gesto moral. Que por isso, pode ser errado. Ainda assim, a causa desse erro não está necessariamente na piada, mas no que nela faz-nos sorrir. 

Da lágrima não aguardamos escrúpulos, e parece que, no sofrimento, temos o salvo conduto para estampar fisiologicamente a expressão no rosto. O inverso, a antítese. Chorar de tristeza como o antagonismo perfeito à gargalhada. São dia e noite, Yin e Yang, e como exercício, deveríamos ponderar a condenação do riso, frente à condescendência e à compreensão que entregamos ao pranto. Afinal, fazer chorar é menos virtuoso do que fazer sorrir. Mas sorrir é menos virtuoso do que chorar. Dirão que importam os motivos, mas pouco se julga os estímulos que levam ao choro. Aplicam-se os bondosos a reconfortar o melancólico e estabelecer novamente a normalidade retilínea. 

Encantadores e requintados, o choro e o riso são causas um do outro. Pode-se fazer sorrir pelo choro, e o mais preocupante, chorar pelo riso. Injúrias adultas e implicâncias juvenis, findam invariavelmente no sofrimento. Nos tribunais, nas escolas e, recentemente, na grande mídia, o humor é tratado como delito. Pela precaução moral e criminal, afigura-se o riso como peixeira, ou como espingarda, capaz de lesionar e ferir. Causar o pranto. 

Lipovetsky em A Era do Vazio, retrata a sociedade pós-moderna como desprovida de sentido nas grandes instituições morais, sociais e políticas. Nela, a cultura é aberta de forma a abrandar e amolecer as relações humanas, forçando a predominância de certo hedonismo, tolerância e coexistência pacífica dos agentes antagônicos. Violência e convívio, ambientalismo e consumo desenfreado, índios e garimpeiros canalhas, patrões e empregados. Num sopro de Sérgio Buarque de Holanda e seu "Homem Cordial", Lipovetsky evidencia uma lógica bipolar, que traduz-se no humor humilhante, politicamente incorreto e ofensivo, que de maneira irrefletida engrandece estupros, zomba de acidentes, graceja da morte e diverte-se com a amargura. 

Do que riremos? Perguntará o Diabo. De nada. Responderá nosso Deus. Os equânimes e equilibrados Aristotélicos dirão: riremos do que a ninguém possa magoar. E nada mais. O Diabo rirá, de sarcástico. Deus seguirá sério, sóbrio e solene. Alguém rirá de tal conversa e outros a julgarão frívola, tola ou fútil. O riso é como a dor. Dipironas e Paracetamóis poderão abrandar os espasmos, as cólicas e os cortes. A moral e a doutrina são a analgesia do riso. Por elas, prenderemos as bocas e impediremos os ruídos. Intimamente, duvido muito de nossa responsabilidade. Contesto veementemente nossa capacidade de fidelidade às éticas vestimentas. Do mesmo modo, reflito imensamente acerca da perversa intenção do comediante, ao expor sentenças hostis, nocivas e jocosas sobre a inanição de miseráveis crianças abandonadas. 

 O riso da morte é inútil frente ao fenômeno. A alegria pela vida, também. Após o diagnóstico, talvez uma gargalhada enfraqueça nosso próprio câncer. O choro talvez o torne soberano e poderoso demais. A indiferença nos faz impostores, hipócritas. Se nos colocarmos no lugar do outro, talvez estejamos perdendo o nosso direito de rir, e de chorar. Há mais tristeza no mundo do que nos limites de nosso apartamento.