quinta-feira, outubro 27, 2022

No próximo domingo, inegavelmente, a vitória sobre o Bolsonarismo é o que mira nossos mais profundos desejos. A precisa porcentagem que nos trará, ao menos, qualquer esperança de que à terra desça, um sonho intenso. Um raio vívido de amor e de esperança. Há muito resignei-me e aceitei que não há encantamento algum na política, assim como não há fartura ou abastança de virtudes, santidades e honras na raça humana. Campanhas eleitorais, imundas peças publicitárias, roupas, discursos, paradigmas e redes sociais. Somos trépidos aventureiros que escolhem entre o desespero e a aniquilação. 

Afora a vitória das urnas, o resultado não desenha-me um otimista. Temos uma axiomática derrota. Fomos constrangidos a ela. Perdemos e padecemos pela existência do fenômeno chamado Bolsonarismo, que há pouco, conhecíamos somente como alguma inexistente palavra que acolhesse em sua significação, conceitos como "boçalidade", "rudeza", "delinquência" e "imbecilidade". O Bolsonarismo nos tirou muita coisa. E nos deu outras. Brinda-nos com a obrigação de dividir o mundo com sujeitos que não pretendem dividir. Nem o mundo, nem o que dele origina-se. 

Confesso que ando pelas ruas imaginando a cada indivíduo que cruzo pelo passeio, qual será sua escolha. No que acredita aquele fulano. Seria capaz de ignorar um índio em chamas? Ou espremer com o alicate a língua de um adversário político, até que sob gerência de farta tortura, entregasse seus companheiros? Espancariam o filho homossexual ou menosprezariam a vida de meio milhão de brasileiros? Enxergariam tanto "espírito no feto e nenhum no marginal", incriminando jovens e pobres mães que, por ventura, não desejassem procriar? Ou derramariam mentiras kafkianas e esquizofrênicas, na tentativa de vencer a qualquer custo e manter um poder insensato, desleixado e irresponsável? 

 Homens e mulheres que acostumaram-se com o subdesenvolvimento da própria existência. Com a míngua da civilidade, da amabilidade e da benevolência. Estarão por aí, nas portarias, condomínios, piscinas, shows e veraneios. Nas torcidas, festas infantis, puteiros e capelas. Desertores da misericórdia e carrascos do altruísmo. Exterminam grosseiramente a doutrina cristã, e renegam o seu próprio Deus, ao ignorarem conscientemente o livro sagrado, quando nos diz: 

"O violento recruta o seu próximo e o leva por um caminho ruim." 

Havemos de vencer no domingo, e extirpar, ao menos do Poder Executivo, o símbolo da inépcia, da tolice e da maldade. Havemos de saber enxergar o outro, e compreender que a espécie humana é um descuido das divindades. Um hiato na harmonia do universo. E que estarão por aí os intolerantes, brutos e incapazes. Doutores, ou não. Endinheirados, ou não. Provavelmente seguirão a proferir sandices, mentiras, desvarios e delírios. A eleição não sumirá com os mentecaptos. Não esvaecerá os cretinos adesivados em volumosas camionetes. 

Eu tenho medo. Do meu país. De minha própria gente. Inquieto-me e desassossego-me. Que direi aos meus filhos? Que conversarei com o motorista do taxi? A que concepções dedica-se a moça do café? Roubaram-nos, por enquanto, a bandeira. Espoliaram-nos a serenidade, a trégua. Puseram universitários contra a integridade, pensadores contra a sensatez e negros de frente para a pólvora. Afanaram a ordem, a brandura e emporcalharam o silêncio, com tirânicos discursos e inóspitos comportamentos. Causaram-nos constrangimento. E tentaram, dia a dia, emoldurar outra vez heróis perversos e truculentos. 

Eu quero um Brasil que se orgulhe do preto. Não do verde e amarelo. Não quero patriotas. Quero cambalhotas. Um Brasil que cultue Marias e que respeite a história, reaja contra a dor e a miséria. Quero um país que talvez ainda nem tenha existido. Eu quero é enxergar a bandeira outra vez, como alegoria. E lembrar que por ali, há poeticamente o significado das cores. 

Afora das urnas, a cidade está lotada de ratos. E os ratos seguirão pelos esgotos. Haja o que houver, os ratos jamais desaparecerão.

quinta-feira, outubro 13, 2022

Ao meu avô

Hoje meu avô foi enxergar a cidade de cima. Como talvez não tenha visto em suas minuciosas diligências nas cartografias. Agora em celestial companhia e moderna resolução, como jamais pôde encontrar nos corroídos mapas a que se debruçou durante anos, por entre os poeirentos corredores do Instituto Histórico.
 

Meu avô era um curioso. Tinha a discrição de um adulto encabulado, e a bisbilhotice de uma criança que sonhava escutar as histórias. Averiguar as personagens. Entusiasta das revoluções, independências, batalhas e nascimentos. Zeloso pelas datas, episódios, tratados e cronologias. O meu avô era memória. Não dessas, rasteiras, a que se espera evocar o mês passado, ou anos atrás. O meu avô era capaz de rememorar a tensão platina durante a Guerra do Uruguai, e voltar à 1864, como se lá estivesse ao lado dos Colorados, ou mais provavelmente, pela aversão futebolística ao vermelho, lutando em companhia do Partido Blanco. 

 Diz-se do velho que jamais foi à Europa. Afora as enciclopédias e a farta literatura que insistira declamar a mim, meu avô não saiu do Brasil. E teria motivo? Posto que seu divertimento era desvendar as ruas da cidade, como se fossem filhas. Resolver o dilema das avenidas e descrever o cotidiano porto-alegrense como se testemunhasse a balbúrdia de cada esquina. Íntimo de Castilhos, Bonifácio e Getúlio. Conhecido de Canabarro e Garilbadi, olheiro das estâncias, das charqueadas e das missões, era capaz de narrar as biografias como se estivesse presente, sentado na velha cadeira de balanço, ou no despojado e simplório assento acolchoado, de onde batia com os dedos eficientes na maquina de escrever. 

Lembro-me do jornal espalhado na cama. Todo santo dia, ao lado do chimarrão, e da velha esposa. Amiga e companheira que a saudade deve aligeirar o velho pelos caminhos luminosos que levam da vida à morte. Pelo passeio leve e acelerado que faz-nos acordar sem ter de abrir os olhos. Onde os corações, pulmões e artérias, são dispensáveis. Supérfluos. Certamente meu avô se despedirá das calçadas da Riachuelo, e andejará resoluto até a General Câmara, avizinhando-se da Borges, onde encontrará um longevo admirador a abordá-lo no itinerário. 

Sem muita paciência para as frivolidades, mas ainda assim atento à magnitude da poesia, o velho declamava Neruda ao neto ainda miúdo. Com os olhos ensopados por uma lágrima fugidia, cantava as frases com aptidão cenográfica. Ao meu avô, parece-me que a palavra foi companhia perpétua, e dias antes de partir, foi ainda capaz de proferir-me sentenças de parnasianas construções, repletas de um sofisticado e engenhoso português. Língua a que ofertou elevado respeito, cortesia e gentileza. 

Porto Alegre já não é mais a mesma. E de seu bairro tão amado, o Menino Deus. Dedico-lhe um verso de Caetano, na canção que carrega o nome das cercanias: 

"Menino Deus, quando tua luz se acenda
  A minha voz comporá tua lenda
  E por um momento haverá mais futuro do que jamais houve." 

Não poderá mesmo haver futuro, ao apagarem-se os homens como meu avô. Homens que esmiuçaram o passado, e que indagaram os relatos, os livros e as anotações. Apaixonados pela cidade, e verdadeiramente fascinados pela pátria. Que saibam construir o que é subsequente. O que virá. 

Deixa meu avô um aviso, um pedido. Até mesmo uma advertência. Cuidem do futuro como ele cuidou do passado. Sejam verdadeiramente políticos e protejam a verídica família, a comunidade e os amados, assim como fez o velho. Até os últimos dias. Entranhado em farta e encantadora literatura, pleno de uma artística e rústica delicadeza, dedicado ao trabalho e às recordações. Meu avó é um fascículo volumoso na história da cidade. Do país.