terça-feira, julho 05, 2022

Os confins do humor ou o charme da atrocidade?

Muitos foram os nomes. O bíblico Barrabás, que ao invés de um trivial larápio, pode ter sido preso como revolucionário que afrontara os romanos na batalha por Israel. Jesse James, com nome de galã Hollywoodiano, especialista em assaltos durante a Guerra da Secessão. Billy The Kid, o famoso fora da lei que assassinava e roubava animais durante os românticos tempos de Velho Oeste. A dupla Bonnie e Clyde, presos após dezenas de assaltos a banco, e mais recentemente o cativante e sedutor Pablo Escobar, personagem de séries, filmes e documentários, que em sua maioria, enobrecem e eternizam as maglinidades cometidas pelo traficante colombiano. 

Capone virou nome de restaurante. Charles Manson constitui parte da alcunha de um rockstar, e até Lili Carabina teve sua vida encenada pela estrela brasileira Betty Faria, num filme intitulado "Lili, a Estrela do Crime". Elias Maluco, Fernandinho Beira-Mar, ainda num carinhoso diminutivo, que o faz parecer apreciado, querido. Bin Laden, Saddam, e como esquecer de Jack, o Estripador?mistérios e incógnitas, que geram histórias, livros e estudos. O homem que assassinou treze miseráveis messalinas, e até hoje é lembrado com elegância, e certo fascínio. 

Há no crime, inegavelmente, algo de romanesco, lírico. Por entre invasões, trapaças e golpes fatais, a história das vítimas é deixada de lado. A própria sociologia e criminologia glorifica o contraventor, ao estudá-lo. Afinal, quase todo objeto de estudo é intrigante, encantador, e tratando-se das mazelas psiquiátricas, o corriqueiro ser humano torna-se raro, incomum, e por conseqüência, admirável, surpreendente. A violação de princípios morais é, por si só, uma elegante espécie de arte, que enfeita as tragédias e inspira o reconhecimento desses agentes do caos. E aqui não estamos falando de Guy Debord e de sua "Sociedade do Espetáculo" que por certo tem suas louváveis considerações sobre esse fenômeno. Talvez estejamos falando do deslumbramento humano pelo que é empedernido, anárquico e por tantas vezes, desumano. 

O consenso civilizatório, quando deturpado, causa-nos talvez uma espécie de encantamento, capaz de produzir imensa identificação tipológica com gângsters, poderosos, assassinos e golpistas, que em sua obscura existência infame e transgressora, pintam de forma surrealista o cenário monocromático e insosso do cotidiano. O canalha que trai com inteligência e método, o conquistador que ilude e dissimula, e o contrabandista que proporciona o acesso ilegal ao produto vetado e escasso, tornam-se facilmente heróis da indústria cinematográfica e cultural, alimentando como Prozac a alma de cansadas criaturas. Lampião, Madame Satã e Robin Hood, tentamos até impor-lhes benevolentes intenções, a fim que possamos talvez, consumir-lhes com aprazibilidade e mansidão moral. Afinal a culpa castigaria-nos vigorosamente ao assumirmos a pacata identificação com estupros, facadas e roubos.

Há quem se pergunte, ainda, o por que enxergamos a ostentação e a exibição de fuzis nas mãos de pequenos meninos na periferia da cidade. E por que os garotos brancos de escolas particulares, fantasiam-se de meninos periféricos, consomem sua música e evidenciam a sua moda, nas vestes, na linguagem e na conduta. O crime, a contravenção, a transgressão e a desobediência civil, os conferem a resplandecência e a luminosidade social que a todo jovem é primordial. 

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, nos "Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo”, investiga a sociedade pós-moderna, marcada pelo desinvestimento público, pela perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas, e evidenciada pela cultura desimpedida, que tenta serenar e apaziguar as relações humanas, buscando um tipo de predomínio da tolerância, do hedonismo, e principalmente, a coexistência pacífico-lúdica dos antagonismos. A lógica neoliberal é parte primordial desse processo, assumindo que enseja a exclusão e a discriminação como parte preponderante de seu projeto econômico e social. Mas necessitando quase sempre, desse fleumático e manso convívio entre opressor e oprimido, entre tirânico e humilhado. 

Da Vinci e Goya foram engraçados. Puseram humor em suas obras e aos olhos mais desatentos, talvez tenham passado despercebidos. Na filosofia e no mundo acadêmico, o escárnio e a zombaria são um sinal inequívoco de superficialidade. De incultura e imperícia, e talvez até de certa incapacidade de produção literária, filosófica. Havemos de transfigurar, e mesmo que meia dúzia de teses adotem o riso como tema, ainda passamos longe da averiguação séria, de um assunto gozado. A lógica confusa de uma sociedade que celebra o crime, traduz-se num humor de humilhação e arrogância, que transforma o politicamente incorreto em indispensável, e não mais em equipamento cômico. Há certa perseguição pelo choque, e pelo riso triste. Aquele que provém de uma hostilidade ao desvalido, ao desamparado ou ao inválido. 

Eis que me deparo mais uma vez com o texto afrontoso e malvado de um comediante chamado Léo Lins. A afronta e a maldade, não são vilãs e jamais a arte as assumiria como tal, mas o humor que somente é capaz de esculachar a tristeza, de meritizar o estupro, a deficiência física e o drama dos indefesos, é arte debilitada, quebradiça, e intelectualmente pobre. Condenada ao tempo. O humor, que há tanto tem sido repudiado pelas camadas intelectuais e acadêmicas, na voz desse rapaz, é infelizmente um apelo bobo e gritante pela atenção da mídia. Sem a coragem e a astúcia de Capone, ou a impavidez de Escobar. Sem a elegância dos mafiosos italianos e a perspicácia de Ronald Biggs, Léo Lins será esquecido pelo tempo, e venerado por grosseiros, indelicados e insensíveis. Não o quero suspenso, censurado e calado. O desejo o tempo. Não há nada mais engraçado do que o tempo.