quarta-feira, maio 08, 2024

Porto Alegre Sitiada

A saudade, às vezes, bate como bordoada. É como um espasmo que enverga-nos a relembrar histórias, e reviver as peripécias. A única dipirona possível pra amenizar a dor. Há mais de um ano meu avô deixou Porto Alegre. De forma definitiva, ferrenha e inabalável. Encontrou a morte e, só assim, conseguiu separar-se definitivamente das esquinas abarrotadas do Centro, do corpo azul dourado do Menino Deus e do velho e imenso Guaíba. 

            A mim nunca houve concreta separação entre Sérgio da Costa Franco (o meu avô), e a cidade. Parecia que as vielas, dutos e avenidas, eram as pujantes veias do velho, que bombeavam sangue enquanto fazia destemidas caminhadas pelo Parque Marinha. Conhecera minha avó na Praia de Ipanema, e costumava gabar-se de ser uma Ipanema gaúcha, porto-alegrense, e não aquela dos cartões postais eternizados por Tom e Vinícius, que fantasia um fúlgido e fascinante Rio de Janeiro. 

            Meu avô era um apaixonado, um estudioso, e em quase mil verbetes, registrou com inaudita perícia a evolução dos bairros, praças e ruas de Porto Alegre, em seu afamado Guia Histórico. Monumentos, instituições, recantos pitorescos e personagens ilustres, ao velho avô, eram como íntimos companheiros do velho restaurante Naval. Dedicou-se a pesquisar e amar a cidade. Viveu cada naco de calçada do Centro Histórico, e pôs em suas crônicas, publicadas diariamente no Correio do Povo, o cotidiano recorrente, habitual e fabuloso de cada episódio Porto-Alegrense.

            Que bom que meu avô não anda por aqui. Escondido, talvez, a lhe perpetuar a fama de durão e empedernido, choraria. Assim como timidamente chorou com os versos de Neruda, não lhe seria cabível enxergar a cidade do jeito que está. Parece-me que essa tragédia lhe seria inaceitável. De certo evocaria seu antigo desejo, de que cidade voltasse a parecer com a Porto Alegre de 1935, que ostentava resquícios de um período colonial e transformava-se aceleradamente sob competentes administrações de Otávio Rocha e Alberto Bins.

            Estamos debaixo d`água, e não há literatura possível. Uma crônica amarga do que há dias, parecia normal, estampa o noticiário e monopoliza a prosa do povo. Botes, barcos, máquinas e escuridão. Aproximamo-nos da morte e da catástrofe de maneira dramática, fazendo com que essa proximidade nos acostume, aos poucos, com a tragédia. Um péssimo costume. Nenhuma foto ensolarada na Orla, nenhuma loja anunciando seus produtos na Rua da Praia. Sem grenais, festivais, mates compartidos, peixes embalados nas peixarias do Mercado.

            A cidade chama-se angústia. Solidão. Aos que perderam os sofás, aparelhos de TV, mesas e fogões, aflição. Aos que perderam algum avô, um novo namorado, uma velha mãe, desespero. O pânico financeiro e a revolta com Deus. Talvez, ao menos, o alento de saber que o povo anda pelas ruas. Povo aguerrido. Alagados, encharcados e corajosos, na busca de um braço perdido, que possa agarrar os remos e vassouras, apaziguando um pouco o medo na segurança de uma canoa improvisada. 

            De que altar choraremos juntos a meu avô, se não podemos sequer acender as velas? Estão em falta, nas frívolas prateleiras vazias do supermercado, que assim como num filme americano, parece ter sido invadido e saqueado violentamente nesse cenário apocalíptico. Quando vamos nos encontrar de novo? Quando havemos de amar o rio, outra vez? O pobre, poluto e adulterado, talvez tente buscar o que lhe roubamos desde sempre. Talvez esteja em revolução, insurgindo contra os manhosos homens públicos, que ignoram a sua magnitude pelos indecoros do capital.

            Meu avô não acreditava em Deus. Jamais lhe foi verossímil. Era um homem dos fatos, documentos, títulos, certidões e atestados. E mesmo que a literatura lhe desse vasta destreza espiritual, dizia-se ateu incorrigível. Mas eu consigo ver o velho, tímido e correto, dedicado e apaixonado, encostar no homem lá de cima, seja ele quem for, e pedir-lhe alguma trégua. Que cesse o sofrimento desse povo, que pare as chuvas e que nos dê sabedoria, destreza e calma para voltar. Que controle as nuvens e os ventos, mas que, acima de tudo, dê-nos delicadeza, coragem e determinação para sorrir de novo.


Jonas Lewis da Costa Franco