quarta-feira, abril 02, 2025

Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo - Uma Reflexão Festiva

 Há quem trate o mundo como recinto ordinário, previsível. Há quem o diga como compasso exato, artificiosa coreografia aprendida, domesticada e repetida. Vestir-se com os tecidos da norma, caminhar nos retilíneos traços dos dias comuns e falar o que se espera, sorrindo no tempo certo, e calando quando o silêncio impõe sua regra austera. Boca obediente, comportada. Olhos decentes, empenhados, corpo arrumado, talhado em dobra e obediência — que aprendeu, cedo demais, a não incomodar.

Mas há aqueles — felizes, dizia Erasmo de Roterdã — que não se curvam a essa régua invisível. Aqueles em quem a lógica do mundo hesita, treme e se embaralha. Foucault diria: são os que habitam as margens do discurso, os que dançam fora do compasso. Não por desvio, mas por outra geometria — por outras formas de ver, de sentir, de ser.

Hoje é dois de abril. Dia Mundial da Conscientização do Autismo. Talvez o dia perfeito para não caber. Para não explicar, nem reduzir. Para não alinhar a diferença à cadência das definições. Talvez seja o dia de celebrar o drible. O tropeço que vira dança. A palavra que não chega, mas ressoa. O gesto que escapa — e, por isso, ilumina.

Esqueçamos as datas, calendários e cerimônias, posto que são invenções do mundo comum — essa fábrica de moldes que forja réguas para medir o que escapa, cria nomes para conter o indizível e sorrisos para fingir a paz. Um mundo que inventa calendário para domesticar o tempo, etiquetas para disfarçar o estranhamento e a rotina para apagar o espanto. É um mundo que teme o desvio, que cochicha diante do silêncio, que apressa o passo de quem ousa parar — de quem se recusa a rimar a vida com pressa. É o mundo dos manuais — onde tudo tem de ter uso, função, resposta, missão. Onde os corpos devem andar em fila, e as almas não podem tropeçar em sonho.

Hoje e, ao menos hoje, deixemos o mundo comum cochilando em sua lógica exata — e celebremos a festa sem roteiro. A fantasia que se repete com brilho refeito, dia após dia, na rotina mágica do incomum. Hoje, cantemos o Autismo e suas encanterias. Suas alquimias silenciosas e suas delicadezas que acendem estrelas no meio do dia. Falemos do jeito com que tocam o invisível e rasgam a cortina pesada da normalidade. Porque vivem outro compasso — mais profundo, mais sincero, mais inteiro. Mostram que o real não é trilho, é espiral. E que a vida não é linha reta, mas rio que se curva, serpenteia e canta seus próprios desvios.

Celebremos a sorte de quem toca nesse mundo, porque, mesmo de raspão, algo em nós também se desfaz e se refaz: desfaz-se o casco duro da pressa, o hábito de olhar sem ver e a urgência de nomear as coisas. Porque as coisas, no fundo, são só isso: coisas. Mistérios com forma, silêncios em cor, dissonâncias que transformam o acorde comum em jazz — e não mais melodia dócil, mas vertigem sonora, onde cada nota intrusa esbarra em sentimento e ressoa como quem revela segredos extraordinários ao ouvido do tempo.

E o autismo também é isso: é a quebra que faz nascer o encanto, o desvio que pulsa num ritmo verdadeiro. Porque o autismo não anda por onde se espera — ele borda pelas margens, dança nas bordas do mapa, e é ali, fora da rota traçada, que o mundo revela suas verdades mais guardadas. É na vereda, no desencaminho, onde o tempo não é tirano — é respiro. O gesto não é desempenho — é linguagem.

O autismo nos sussurra que o mundo não é plano, nem reto, nem pronto. Que por trás das lisas fachadas da rotina há dobras escondidas, frestas por onde escapa o vento de outro tempo, com cheiro de saudade. O chão, que parecia firme, revela textura secreta, terra molhada. A gente aprende a enxergar com o olho torto, o ouvido oblíquo, e a silenciar o barulho do mundo para ouvir o que não se diz em voz alta. De que segredos riem as conchas quando se perdem da maré?

É no autismo que a vida desaprende o dever e reaprende o deslumbramento. Como quem se perde do mundo e encontra, enfim, o encantamento. Celebremos, portanto, a maravilha de não caber. O afeto que anda em patas leves, se esconde como tatu-bola e ressurge, inteiro, num gesto mínimo. Celebremos o tempo que se alonga, o olhar que demora, o amor que não se explica, mas se deixa entrever — como vaga-lume em noite escura. Festejemos o respeito e a fascinação de escutarmos com a pele, de enxergarmos com a respiração e de aprendermos com aqueles que não marcham no passo certo das multidões, mas dançam, livres, imunes e, principalmente, honestos.

Exaltemos aqueles que seguem trilhas inventadas no musgo, nos caminhos que só os bichos mágicos conhecem. Aqueles que conversam com o mundo em linguagem de vento e pedra, que reinventam a verdade utilizando os fios invisíveis do gesto. Celebremos o Autismo, e reconheçamos, por fim, que o autismo não é ausência — é presença em outra frequência. E quem se afina com ela, ainda que por um instante, descobre que o mundo é mais vasto que o mapa, mais fundo que o costume e mais bonito do que o nome das coisas pode alcançar. Há beleza demais nos cantos onde ninguém costuma olhar.

quarta-feira, março 26, 2025

Nem Todo Grito é Festa


O futebol não é só paixão nacional. Muito além das fronteiras do Trópico das Contradições, conhecido como Brasil, o futebol é um fenômeno sedutor, político e encantador. Um espetáculo coletivo que celebra a estratégia, o corpo humano, a arte e o improvável. Suor, lágrimas, sorrisos, glórias, encantamentos e decepções. O futebol foge às rígidas lógicas da razão e, portanto, vez por outra, insubordina-se às análises acadêmicas, aos diagnósticos políticos e até ao importante espelho social no qual todos nós deveríamos, habitualmente, ser capazes de enxergar nossas próprias faces. 

O que nos move, usualmente nos revela. O que nos empolga, evidencia-nos. É celebração e descoberta, euforia e confissão. Não há o que a disposição da embriaguez não exponha. Quando escorre a alegria pelos poros e a voz junta-se ao coro da arquibancada, deixamos escapar o que, no sóbrio e solitário silêncio, talvez ficasse guardado. Na catarse do gol e na comunhão do grito, emergem grosseiras verdades, e tendências mal resolvidas. O futebol despe-nos como detector de metais. Ignorar os seus aspectos políticos, as suas exclusões, falhas e contradições, é perder a chance de contemplar o Brasil de corpo inteiro. Um país que dança, canta, vibra e se emociona, mas que dissimula e se cala diante do ódio e da violência travestida de paixão.

Nas torcidas cariocas, quando o futebol ainda era mais poesia do que negócio, era comum escutar sambas-enredo na voz majestosa da arquibancada. “Aquarela Brasileira”, nascida em 1964 no Império Serrano, ecoava durante a partida no compasso do surdo e do tamborim. O estádio deixara de ser campo de batalha e virava desfile: um cortejo popular onde o grito de gol se misturava à cadência do samba. “Kizomba , a Festa da Raça”, talvez o mais emblemático samba dos estádios, principalmente entre as torcidas de Vasco e Flamengo, ecoou sua força política e social durante as partidas. Campeão em 1988, o marcante samba da Vila Isabel assentou Zumbi dos Palmares na boca do povo. Pela primeira vez em muito tempo, a memória da resistência negra não era sussurrada nos cantos esquecidos, mas cantada em fulgente coro por milhares de torcedores. 

Odes ao próprio time, brados que estimulavam o grupo de jogadores a honrar as cores que vestiam, reclamações de todo lado e até injúrias momentâneas ao árbitro, que vestido como magistrado, deixava de marcar o inequívoco pênalti a favor. Há poesia em cada gesto da boa torcida. Sempre houve. Levar o santo pro estádio, beijar o escudo antes de cada pontapé, agarrar-se na guia do pescoço, e fechar os olhos para ouvir o hino como se fosse serenata de infância. Tem criança que decora a escalação como cantiga de roda e tem velho que assiste ao jogo como quem reencontra um amor de juventude. Que vê nas cores de seu time, e na possível conquista de um troféu, um dos últimos e valiosos motivos para seguir respirando. 

Onde deixamos o fascínio? Em que poeirenta gaveta esquecemos o futebol? Quando deixamos de lado a paixão pelo time e pelo jogo e passamos a entoar ofensas, a vestir o ódio como manto e a violentar o outro com o pretexto de torcer? Onde foi que perdemos o fio do tamborim, o coro do samba-enredo, o batuque que embalava a esperança? O futebol, que já foi roda de criança, ladainha de arquibancada e procissão de alegria, pouco a pouco, se endureceu. Ganhou uma camada robusta de cimento frio. Aos poucos, deixou de ser do povo. Afastou-se do barro, da laje, do radinho de pilha, e passou a caber somente no bolso dos ricos. Os estádios se tornaram arenas esterilizadas, sem espaço pra farofa, batuque ou chinelo de dedo. O ingresso virou produto de luxo, a torcida virou público-alvo, e o torcedor popular foi empurrado pra fora. Fisicamente e simbolicamente. Elitizando o acesso ao jogo, a festa coletiva se enfraquece. O carnaval vira remanso e o consumo solitário enraiza-se. O canto vira performance e a paixão vira posse. O futebol deixa de ser, então, a vivência comunitária para virar espetáculo exclusivo, e num ambiente onde tudo é mercadoria, até o grito se esvazia. Ou se radicaliza. Onde não há espaço pro brincar, sobra espaço pro atacar. 

Nos últimos dias, o que se ouviu não foram os cantos, mas as rajadas. Palavras duras, carregadas de desprezo, de violência, e de uma virilidade oca e tóxica. Dirigentes, jogadores e presidentes, indelicados e desprovidos de qualquer inspiração política, soltam palavras simbólicas, figuradas e metafóricas, carregadas de violência, e disparadas com a naturalidade de quem esquece — ou finge esquecer — que somos animais simbólicos. E que, por isso, as palavras nos moldam, nos movem, nos convocam e encorajam. Aprende-se a odiar, como se aprende a bater escanteio. Aprende-se a violentar com a mesma facilidade com que se decora um cântico racista de torcida. A violência simbólica é a antessala da violência física. Quem aplaude o discurso violento, do sofá de casa, justifica o gesto atroz. Garrafadas, apedrejamentos, empurrões e palavras pontiagudas, são os cupins do futebol. Cochonilhas e pulgões que sugam a seiva e enfraquecem a planta, matando-a dia após dia. São impertinentes como ferrugem, nocivos como carrapatos e fatais como vírus. 

Onde andam os sambas? As famílias? Onde anda o povo que ninguém vê? Hei de escutar um teimoso e pacífico tamborim soar entre as arquibancadas? Hei de ver uma garota, de chinelo gasto e camisa larga, gritar pelo seu time com o mesmo fervor de quem reza? Eu espero que sim, porque o futebol ainda pulsa, e não deve parar de pulsar, como o pujante surdo na avenida. Ainda há, no Brasil profundo, torcedores que resistem como flores em rachadura de parede. E talvez, se escutarmos com atenção, possamos ouvir novamente o samba. Talvez ele ainda esteja ali, quieto, entre um grito e outro. Esperando que o futebol volte a ser o que sempre deveria ter sido: encontro, invenção e pertencimento. Arte, simplesmente.


                                                                Jonas Lewis da Costa Franco


sábado, março 08, 2025

A Felicidade é Azul , Preto e Branca



O que explica a felicidade? O que esclarece-nos a serventia do prazer, a função do contentamento? Vinte e seis séculos de filosofia e talvez não tenhamos chegado perto da resposta. Não há resoluções no pensamento metafísico, tampouco explicações para tão herméticos questionamentos. A felicidade é coisa emaranhada, equívoca, nebulosa. Atrapalha a lógica, desconcerta as coerências, desnorteia as dialéticas e, assim como tudo que é extraordinário, admiravelmente arremessa-nos contradições e absurdos. Como podemos não saber o que a felicidade é, e ao mesmo tempo, saber exatamente quando fomos felizes? Como é possível não compreendermos a felicidade, mas reconhecermos com precisão os momentos em que a vivemos?

Fui feliz na casa de minha avó. Da janela que cortava a alta sala aconchegante, eu enxergava os refletores do Estádio Olímpico e boa parte de suas arquibancadas. Um pouco mais acima, nas colinas da Medianeira, firmava-se a casa onde minha avó fincou raízes, criou filhos, viu nascer um abacateiro, leu os jornais e bordou sua vida em dias inteiros de afeto e silêncio. De lá eu escutava o incessante burburinho das ruas que rondavam o Monumental, e o estrondo festivo do gol, que soava um segundo antes do rádio contar o fato. Havia a balbúrdia dos ataques, e o silêncio das defesas, assim como a algazarra dos portões que vazavam como alto falante, a batucada persistente da torcida.

Para mim, pequeno e ainda intimidado pelo imenso pátio de minha avó, o estádio era coisa colossal, como um Coliseu recente e vanguardista, rodeado de ambulantes, torcedores, flanelinhas e homens eufóricos. Ir à casa da Teixeira de Carvalho, era ir ao Grêmio. Talvez pela proximidade e talvez pela felicidade. Sopas amarelas, caldas de açúcar e papos de anjo. Enredos, primos e peripécias. Que sabor nectarino tinha a vida perto do tricolor da Azenha.

Talvez o mistério seja esse. Disso já não desconfio. Parece-me que pouco importa o que é felicidade, senão descobrir onde a realidade esconde a sua doçura. Aviões, pirilampos, montanhas ou sapos, há de se aprender que o estampido da máquina de escrever, os refletores, a velha cadeira de balanço e as tardes de Grêmio, são os abraços do tempo, os afagos que aliviam a certeza inclemente de nossa fraqueza.

Há quem não os perceba. Nem os abraços, nem as doçuras. Há quem não enxergue que a luz dos refletores anunciando o início da partida, não era luz. Era lembrança. Há quem desvie o olhar quando rola a pelota, e não encontre serventia nessa dança violenta entre os homens e a esfera. Onze de cada lado, guerreando sem espadas, lanças ou katanas, num verdoso tablado onde a força se curva à delicadeza. Onde a brutalidade permeia os hiatos da lucidez, fazendo arte. O futebol não tem utilidade. É um exercício delicado e sutil sobre a percepção simbólica da vida. E eis a sua proficiência.

O futebol não se joga com as mãos. A superestimada parte final dos membros superiores, providas de carpos, metacarpos e falanges, que há tanto desgastamos em tudo o que se pode imaginar do cotidiano prático, aqui não governa coisa alguma. É como se o futebol dissesse-nos que, no chão, estão as coisas valiosas. Que aos pés devemos atentar veneração, e que ali descobriu a doçura que lhe fazia feliz. Como descobri no Grêmio, em minha avó, e em sua casa. Como descobri no azul, no preto e no branco.

Que faz um menino escolher as cores? Que tipo de dança graciosa e cheia de fúria, fugida dos teatros e encenações, apodera-se da fantasia de um lépido garoto? Era o suor, o silêncio, a dor pungente da derrota, o churrasquinho magoado de uma semifinal perdida, a mágoa enfurecida de um gol anulado. O Grêmio me fazia feliz. A vitória tricolor era, acima de tudo, um ato de beleza. Como no enlevo arrebatador de um quadro de Basquiat, ou na impactante comoção frente às missas de Bach, eu havia aprendido. A felicidade atravessa-nos. É vertigem e não razão. É impulso e não matemática. O Grêmio havia me ensinado a extrapolar, e a perceber felicidade, na desordem inexplicável da paixão. O Grêmio tinha-me para sempre. Como um tolo. Como noite que pertence ao céu, mesmo que não lhe ocupe todo tempo.

Foram copas, ligas, torneios e disputas. Vinham de longe pra afugentar o Grêmio, e o Grêmio dava-lhes reprimendas ferozes, com cabeçadas meticulosas, chutes acurados e ríspidos encontrões. Por vezes castigavam-nos, e magoavam a tarde, fazendo-me subir a lomba, de volta pra casa de minha avó, cabisbaixo e doído. O Grêmio era êxtase e desalento. O Grêmio era grito e remanso. Festa e luto, como a rotina. Ascensão e desmoronamento. O abraço e a solidão.

Quem sabe o Grêmio tenha me ensinado sobre a vida. Talvez no cimento grisalho do Estádio Olímpico, eu tenha percebido que a graça da conquista, é o percurso. E que não importam as amarguras, quando se fantasia a próxima vitória. Não importa a injustiça quando a gente culpa o juíz, o centroavante ou o goleiro adversário. É uma forma sensata de insensatez, que prepara o corpo e a alma para o confronto do ano que vem. Para o troféu que ainda não veio.

O Grêmio é mesmo estranho. Como a felicidade, feito desse desequilíbrio perfeito. Desse salto entre o êxtase e a queda, entre a plenitude e o vazio. Como poesia, como a contradição que pinta a beleza. O Grêmio é uma paixão febril. Toma-nos sem aviso, sem anúncio ou advertência e faz vibrar o peito, como a arquibancada. Faz a gente pular feito bicho, rezar pra santo desconhecido e ver-se como um estúpido, sofrendo em frente ao acaso de uma batalha desportiva. Sofrer em frente ao acaso. Ignorar as certezas da lógica. Amar os apertos, os contratempos e metamorfoses. O Grêmio me ensinou a amar. Não a convicção de sua vitória, mas a firmeza de minha obstinação. A graça de minha doença, e o encanto de saber-se pronto, para a queda e para a glória. O Grêmio me disse, desde muito cedo, que o futebol é mais importante que o mundo.

quarta-feira, maio 08, 2024

Porto Alegre Sitiada

A saudade, às vezes, bate como bordoada. É como um espasmo que enverga-nos a relembrar histórias, e reviver as peripécias. A única dipirona possível pra amenizar a dor. Há mais de um ano meu avô deixou Porto Alegre. De forma definitiva, ferrenha e inabalável. Encontrou a morte e, só assim, conseguiu separar-se definitivamente das esquinas abarrotadas do Centro, do corpo azul dourado do Menino Deus e do velho e imenso Guaíba. 

            A mim nunca houve concreta separação entre Sérgio da Costa Franco (o meu avô), e a cidade. Parecia que as vielas, dutos e avenidas, eram as pujantes veias do velho, que bombeavam sangue enquanto fazia destemidas caminhadas pelo Parque Marinha. Conhecera minha avó na Praia de Ipanema, e costumava gabar-se de ser uma Ipanema gaúcha, porto-alegrense, e não aquela dos cartões postais eternizados por Tom e Vinícius, que fantasia um fúlgido e fascinante Rio de Janeiro. 

            Meu avô era um apaixonado, um estudioso, e em quase mil verbetes, registrou com inaudita perícia a evolução dos bairros, praças e ruas de Porto Alegre, em seu afamado Guia Histórico. Monumentos, instituições, recantos pitorescos e personagens ilustres, ao velho avô, eram como íntimos companheiros do velho restaurante Naval. Dedicou-se a pesquisar e amar a cidade. Viveu cada naco de calçada do Centro Histórico, e pôs em suas crônicas, publicadas diariamente no Correio do Povo, o cotidiano recorrente, habitual e fabuloso de cada episódio Porto-Alegrense.

            Que bom que meu avô não anda por aqui. Escondido, talvez, a lhe perpetuar a fama de durão e empedernido, choraria. Assim como timidamente chorou com os versos de Neruda, não lhe seria cabível enxergar a cidade do jeito que está. Parece-me que essa tragédia lhe seria inaceitável. De certo evocaria seu antigo desejo, de que cidade voltasse a parecer com a Porto Alegre de 1935, que ostentava resquícios de um período colonial e transformava-se aceleradamente sob competentes administrações de Otávio Rocha e Alberto Bins.

            Estamos debaixo d`água, e não há literatura possível. Uma crônica amarga do que há dias, parecia normal, estampa o noticiário e monopoliza a prosa do povo. Botes, barcos, máquinas e escuridão. Aproximamo-nos da morte e da catástrofe de maneira dramática, fazendo com que essa proximidade nos acostume, aos poucos, com a tragédia. Um péssimo costume. Nenhuma foto ensolarada na Orla, nenhuma loja anunciando seus produtos na Rua da Praia. Sem grenais, festivais, mates compartidos, peixes embalados nas peixarias do Mercado.

            A cidade chama-se angústia. Solidão. Aos que perderam os sofás, aparelhos de TV, mesas e fogões, aflição. Aos que perderam algum avô, um novo namorado, uma velha mãe, desespero. O pânico financeiro e a revolta com Deus. Talvez, ao menos, o alento de saber que o povo anda pelas ruas. Povo aguerrido. Alagados, encharcados e corajosos, na busca de um braço perdido, que possa agarrar os remos e vassouras, apaziguando um pouco o medo na segurança de uma canoa improvisada. 

            De que altar choraremos juntos a meu avô, se não podemos sequer acender as velas? Estão em falta, nas frívolas prateleiras vazias do supermercado, que assim como num filme americano, parece ter sido invadido e saqueado violentamente nesse cenário apocalíptico. Quando vamos nos encontrar de novo? Quando havemos de amar o rio, outra vez? O pobre, poluto e adulterado, talvez tente buscar o que lhe roubamos desde sempre. Talvez esteja em revolução, insurgindo contra os manhosos homens públicos, que ignoram a sua magnitude pelos indecoros do capital.

            Meu avô não acreditava em Deus. Jamais lhe foi verossímil. Era um homem dos fatos, documentos, títulos, certidões e atestados. E mesmo que a literatura lhe desse vasta destreza espiritual, dizia-se ateu incorrigível. Mas eu consigo ver o velho, tímido e correto, dedicado e apaixonado, encostar no homem lá de cima, seja ele quem for, e pedir-lhe alguma trégua. Que cesse o sofrimento desse povo, que pare as chuvas e que nos dê sabedoria, destreza e calma para voltar. Que controle as nuvens e os ventos, mas que, acima de tudo, dê-nos delicadeza, coragem e determinação para sorrir de novo.


Jonas Lewis da Costa Franco

sexta-feira, abril 14, 2023

A Nau dos Insensatos: Morte e Massacre nas Escolas.



        Publicado em 1494, o poema Navis Stultifera, de Sebastian Brant, retratava a embarcação que, atolada de inconsequentes, glutões, doidivanos, preguiçosos e avarentos, dirigia-se rigorosamente a uma ilha chamada “Insensatez”. Foucault, na História da Loucura, retoma a imagem da nau, e a alegoriza para descrever o macabro itinerário dos indivíduos indesejados na Idade Média. Dos manicômios, hospitais e leprosários, essas criaturas eram constantemente segregadas do convívio social. Feiticeiras, hereges, vadios e embriagados, vagariam portanto sobre as águas, desaparecidos. A loucura, que para Foucault, não seria unicamente uma ilustração histórica, e sim, substancialmente uma experiência originária e essencial, que a razão, a compreensão e a realidade, ao invés de descobrir, ocultou, omitiu, pensou ter calado e dominado. Mas jamais a destruiu completamente, deixando-a perigosa e enfurecida. 

            Denunciada por Nietzsche, a Sociedade Socrática, amoriscada e fascinada pelo espírito científico e racional, fez-nos espectadores do nascimento da tragédia, que por ora, degustaria a repressão e o sufocamento que apressadamente viria através dos peritos e teóricos da lógica e da racionalização. 

            Se por um lado somos cotidianamente delirantes, imprudentes e imoderados, por outro amargamos aprisionados a condição de reféns da insensatez, da insanidade. O absurdo é arte, e dele nada podemos prever. Não há prenúncio ou conjecturas. Nada foi subtraído ou vandalizado. Não há formação de quadrilha, planos, estelionatos ou golpes. Estamos diante de um evidente e inteligível sintoma de nossa própria liberdade, como fugitivos das amarras morais e lúcidas. A expressão simbólica dos conflitos e traumas individuais, ganha potência bélica com o consentimento da massa. 

            A sociedade das curtidas e views capta impiedosamente os que buscam o reconhecimento. Do ressentimento, da invisibilidade e do tédio, nascem os indômitos e hediondos, que arremessam o próprio corpo, junto da alma, em um compreensível abismo de fúria e disparate. A polícia não os pode deter. O exército não os pode bloquear, tampouco as políticas públicas têm comando suficiente para encostar na consciência e no ímpeto. 
            A banalidade do mal há de sentar à mesa, e depois de alguns anos em que permitimos, como corpo social, o discurso beligerante, zangado e odioso, essa banalidade há de ser nosso alimento. Estamos com o prato lotado, a faca e o queijo na mão. Proselitismo Marxista, guerra cultural e inúmeros pretextos desatinados e levianos, confundem e congregam os devotos, que dispostos a sacrificar seu anonimato, aniquilam. A si, ao outro e à coerência. 

            Não há insensatez trancafiada em uma embarcação. Nem barco capaz de carregar o desvario dos lares. A extravagância foi celebrada, e trará suas instalações, em escolas, creches, cinemas e circos. A exteriorização da crueldade, quando acompanhada de fuzis, pistolas, facas e espadas, nos servirá catástrofes, maiores do que nossos próprios traumas e conflitos psicanalíticos. E mesmo que o jornalismo pratique sua ética dissimulada, evitando a propaganda do assassino, o medo de nossa própria capacidade trancafiará os exércitos de triviais em suas casas. No quarto ao lado, a solidão pode fabricar uma bomba. A solidão sempre fabricou bombas. O abandono a que nem mais prestamos atenção, mobiliza as massas ao absurdo fantástico, e de lá saem estrelas gloriosas. Quem sabe um dia nosso filho vire uma série da Netflix? Resta decidir se preferimos como vítima, ou facínora. Ao menos cairia no mar de fogo, no circulo mais baixo do inferno. 

            Como disse Jack, o personagem serial killer do longa The house that Jack built, escrito e dirigido por Lars Von Trier:

- "Se você sente que não é suficiente para o mundo, então invente mentiras e torne-se uma lenda."

            Simplório seria atribuir o jorro de violência aos quinhões direitistas de uma política militar e truculenta. É nítido que desde o integralismo brasileiro, emaranhamos à energia do país, um entusiasmo extremista, ainda caótico e arrevesado, que com a eleição e a divinização de um estúpido “messias”, ganhou robustez e agigantou a massa de maníacos incoerentes, descontrolados e antidemocráticos. A velha concepção hitleriana de “sociedade em decadência”, resguarda os destruidores e terroristas, como se paladinos, intrépidos e heróis, enfrentassem a coletividade doente. Essa dimensão multifacetada, alia o crescimento da extrema direita à excruciante solidão dos corpos. O indivíduo percebe, então, que sua apetência é o extermínio dos agentes construtores dessa sociedade que o humilha, inclusive politicamente, com a insegurança da democracia.  

            Quem poderá controlar os desejos internos? Quem poderia dizer-lhes que o mundo é quem manda, e não o contrário? O horror é como o tesão, a tara, a sigilosa perversão que pertence somente ao que perverte. Nem a polícia, nem o presidente. Nem o jornal, nem a ONU. Nem a própria moral pode desmanchar a depravação ou frear a mentira que contamos todos os dias aos nossos próprios ouvidos. Leve seus filhos à escola, e reze. Principalmente por seus coleguinhas.

quinta-feira, março 23, 2023

BBB - Se pudesse escolher entre o bem e o mal

 


A conquista da riqueza e do poder. Eis o impulso primordial que nos faz frequentes ocupantes nos cargos de escravocratas e tiranos. Pérsia, Grécia, Roma e sem desvios, rigorosamente no Brasil, onde longínquos de qualquer abolição, ainda perpetuamos a submissão degradante, vexatória e humilhante. No BBB, a importunação sexual e o racismo, são estruturas essenciais para que se compreenda um fenômeno recente, fresco e contemporâneo. 
            

O nome do programa, mais do que diretamente insinua a estrutura de controle futurista e totalitária criada por George Orwell, em “1984”. O “Big Brother” da TV, com o mesmo nome da governança presente na criação literária, forja de maneira perversa uma realidade quimérica e ilusória, onde participantes trocam a sua saúde mental pela auto promoção e pelo exibicionismo, tão presentes e protagonistas na cultura do narcisismo. Homens negros, mulheres negras, garotos, garotas, influencers e anônimos, encaminham suas vidas à ostentada escravidão, lacrados em um ambiente vigiado, escancarado e hábil em conceder-lhes crueldades e degradações contínuas e assustadoramente naturais. 
            

Talvez com o impiedoso pretexto de um “experimento”, o programa de TV submete-nos à exposição humana, como numa releitura hedionda de um passado colonial, onde seres pertenciam a outros seres, que lhes impunham castigos, reprimendas, agressões e perseguições. Por entre dinâmicas e competições patrocinadas, ornadas com desodorantes gigantes, hambúrgueres, lasanhas, financeiras e propagandas invasivas, o programa expõe seus participantes, e os direciona ao embate, ao conflito, para que suas diferenças substanciais e suas distintas capacidades frente à pressão psicológica, forneçam-nos o conteúdo voyeur televisivo. Do sofá de casa, enxergamos homens amarrados à troncos maciços, carregando vigas, minerando debaixo do sol, e o pior, enfrentando transparentemente os demônios incansáveis de suas próprias cabeças. Em horário nobre, ao fim da novela.

            

Fomos longe demais. Depois de assistirmos ao racismo e à degradação, estivemos de frente a um episódio duplo de importunação sexual. E permanecemos. Íntegros, intactos e pacatos, enquanto o crime sucedia em tempo real. Cúmplices, diriam os mais ingênuos. Que nada! A audiência e a exposição fazem-nos criminosos. A direção do programa é perversa, “neoliberalisticamente” nefasta e responsável ao permitir que uma mulher em situação vulnerável seja tocada e abusada, tornando-a também produto de sua maldosa publicidade. 
            

Aceitamos, portanto, assistir de nossas casas a realidade das ruas, das festas e dos almoços de família. O opressor e o oprimido, que neste caso, dessemelhante ao escravizado colonial, é humilhado por necessidade narcísica, de uma maneira tão natural quanto a respiração. Ali no quintal de casa, frente à farta churrasqueira, tomaríamos goles de cerveja gelada enquanto o tio depravado e criminoso enfia publicamente suas mãos na bunda de uma criança que brinca. Eis o fato. Estamos em tamanha decadência que nosso entretenimento é a angústia, o calvário, a ansiedade e a desgraça. Não nos interessa a festa, tampouco os banhos de piscina. E também não reagimos frente ao crime, afora publicações denunciando o fato explícito, como merchandising e publicidade de nossa própria bondade e compaixão. 

Não só os importunadores devem responder à justiça. São capangas de um líder facínora. A emissora e cada diretor, são os responsáveis imediatos pelo crime, posto que enquanto as câmeras apaziguavam os desejos devassos e delinquentes do telespectador, o alto comando permitia que o delito progredisse, e no dia seguinte, comercializava empacotada sua dissimulada decisão, através de um sisudo e circunspecto apresentador, que costumava rir à toa enquanto conversava com cavalinhos de pano. 

 Intolerância religiosa, abuso, ameaça, crises de choro, machismo e ofensas pessoais. Eis o horrendo espetáculo travestido de experimento antropológico, onde os participantes militam causas sociais a cada semana, soterrados por sua própria escravidão, e emudecidos pela ânsia econômica de uma empresa voraz. Tão voraz quanto seus egos e suas pretensões. 
No outro dia, em um sofá colorido, a apresentadora levanta questionamentos, como se o show fosse um acidente. Mera casualidade de um habitual cotidiano, e não a esquematização de um divertimento inclemente. De um espetáculo voyeur, onde a vulnerabilidade humana é a matéria prima. 

O Big Brother dá dinheiro e dá o que falar. O Big Brother é genial, talvez. Como obra de um ousado e destemido artista, talvez o programa fosse o objeto principal de uma investigação sobre a expressão brutal do século XXI. Forma, técnica e ideia. O Big Brother é tudo, menos inocente. A Globo é grandiosa, mas criminosa. E nós somos sádicos, que já não regozijamos com filmes e novelas violentas. Precisamos de mais. Queremos a baixeza do abuso psicológico, a atrocidade da violação sexual. E nos jantares desconstruídos, encontros acadêmicos e conversas eruditas, proferimos teses humanitárias, engajadas e inclusivas. Somos Fantásticos. 

Plim Plim!

quarta-feira, fevereiro 01, 2023

Do riso

"O cristianismo é pouco propício ao riso". Assim inicia o capítulo 4 de George Minois em A História do Riso e do Escárnio. Pus-me a relembrar o livro em uma despojada e alcóolica confabulação entre amigos. Lembrei-me também de Bergson e de Kierkegaard, com suas valiosas contribuições acerca da ironia. O filósofo Cícero, que após a queda da monarquia, viveu na conflituosa República Romana, dizia que sobre o riso, todos os estudos eram enfadonhos e chatos. De que maneira então trataríamos da zombaria e da gargalhada com a seriedade filosófica e investigativa de austero percurso intelectual? Talvez seja impossível. Os cristãos que o digam. Por amor ou tédio, o Jeová bíblico criou o céu e a terra. E não há nada de engraçado em tal concepção. Nunca houve. De que poderia gargalhar Adão, ou Eva, que sem malícia alguma, estão nus, jovens e eternamente belos? Habitantes de um perfeito jardim, onde tudo é harmônico, natural e pleno. Não haveria de ter risada possível, tampouco o sorriso de satisfação, posto que nem carência, nem superação foram coadjuvantes em suas existências. A permanente plenitude é o túmulo da jocosidade, e do contentamento. 

Quando entra em cena o nefasto, recôndito nas feições de uma serpente, é que aparece, portanto, o pecado. Desequilíbrio, desobediência e instabilidade. É nesse buraco que brota o riso. É a desforra do diabo, que dá ao homem a possibilidade de enxergar-se fraco, vazio e ridículo. Pode-se rir, então. Por que não haveríamos de zombar desse fantoche esquisito e grotesco, que arrota, defeca, envelhece e enlouquece? O riso insinua-se pela imperfeição humana. O humor é a constatação da decadência, e sincronamente, um consolo. Gargalhar compensa-nos para escapar ao desespero e à angústia, e isso possivelmente já seja um lugar-comum. 

A clamar contra a censura e a favor da liberdade de expressão, uns apontam a desaprovação do humor como o início de um pensamento fascista. Déspota e limitante. Do outro lado, e tal divisão era clara nessa conversa com os amigos, há os que juram defender que, como na vida, no humor não pode-se pronunciar a integridade das chacotas, das ofensas e das provocações. Pela moral, e pela sensibilidade, há de se ter limite, e mesmo com a função purgativa e artística da piada, deve-se calar imediatamente na iminência de violar alguém ou algo. 

Jesus não riu. A bondade carrega simbolicamente consigo a capacidade de abster-se à insensibilidade cômica, jocosa e devassa. Esta satânica paternidade liga o riso à imperfeição, à desvirtuação, e ao fato de as criaturas decaídas, cobiçosas e famintas, gargalharem frente ao sofrimento e à condição humana. O diabo ri de sua própria existência. De sua exclusão. O soberano agente do mal é, invariavelmente, ligado às festas, às surubas e aos bacanais. O tinhoso é pai do carnaval, que já na Idade Média apresentava bufões, asnos e bobos, vestidos grotescamente e movimentando-se de forma estapafúrdia. Essa paródia louca que exorciza e acalma, prevalece nitidamente ligada ao monstruoso, à vadiagem e à falta de sentido. O carnaval sorri loucamente, sem compromisso e desprovido de responsabilidade. Gêneros confusos, obscenidades e escatologias, são o dispositivo cênico de uma festiva fuga à realidade. 

Henri Bergson deixa-nos evidente: o riso é incompatível com a empatia. Há de se preterir a sensibilidade, e castigar os defeitos, as tragédias e as doenças. Se por um lado, é purgativo e exorcizante, atacando as angústias e os poderosos, por outro, o riso comete excessos, poupa culpados e fere os inocentes, visando um resultado incontrolável e geralmente, deixando de lado a capacidade de avaliar os casos de maneira específica e ética. Mostra-nos o filósofo francês que a discussão sobre os limites do humor não é tarefa simples, e não pode ser discutida universalmente. Rir é sempre, como aliás qualquer outra atividade humana, um gesto moral. Que por isso, pode ser errado. Ainda assim, a causa desse erro não está necessariamente na piada, mas no que nela faz-nos sorrir. 

Da lágrima não aguardamos escrúpulos, e parece que, no sofrimento, temos o salvo conduto para estampar fisiologicamente a expressão no rosto. O inverso, a antítese. Chorar de tristeza como o antagonismo perfeito à gargalhada. São dia e noite, Yin e Yang, e como exercício, deveríamos ponderar a condenação do riso, frente à condescendência e à compreensão que entregamos ao pranto. Afinal, fazer chorar é menos virtuoso do que fazer sorrir. Mas sorrir é menos virtuoso do que chorar. Dirão que importam os motivos, mas pouco se julga os estímulos que levam ao choro. Aplicam-se os bondosos a reconfortar o melancólico e estabelecer novamente a normalidade retilínea. 

Encantadores e requintados, o choro e o riso são causas um do outro. Pode-se fazer sorrir pelo choro, e o mais preocupante, chorar pelo riso. Injúrias adultas e implicâncias juvenis, findam invariavelmente no sofrimento. Nos tribunais, nas escolas e, recentemente, na grande mídia, o humor é tratado como delito. Pela precaução moral e criminal, afigura-se o riso como peixeira, ou como espingarda, capaz de lesionar e ferir. Causar o pranto. 

Lipovetsky em A Era do Vazio, retrata a sociedade pós-moderna como desprovida de sentido nas grandes instituições morais, sociais e políticas. Nela, a cultura é aberta de forma a abrandar e amolecer as relações humanas, forçando a predominância de certo hedonismo, tolerância e coexistência pacífica dos agentes antagônicos. Violência e convívio, ambientalismo e consumo desenfreado, índios e garimpeiros canalhas, patrões e empregados. Num sopro de Sérgio Buarque de Holanda e seu "Homem Cordial", Lipovetsky evidencia uma lógica bipolar, que traduz-se no humor humilhante, politicamente incorreto e ofensivo, que de maneira irrefletida engrandece estupros, zomba de acidentes, graceja da morte e diverte-se com a amargura. 

Do que riremos? Perguntará o Diabo. De nada. Responderá nosso Deus. Os equânimes e equilibrados Aristotélicos dirão: riremos do que a ninguém possa magoar. E nada mais. O Diabo rirá, de sarcástico. Deus seguirá sério, sóbrio e solene. Alguém rirá de tal conversa e outros a julgarão frívola, tola ou fútil. O riso é como a dor. Dipironas e Paracetamóis poderão abrandar os espasmos, as cólicas e os cortes. A moral e a doutrina são a analgesia do riso. Por elas, prenderemos as bocas e impediremos os ruídos. Intimamente, duvido muito de nossa responsabilidade. Contesto veementemente nossa capacidade de fidelidade às éticas vestimentas. Do mesmo modo, reflito imensamente acerca da perversa intenção do comediante, ao expor sentenças hostis, nocivas e jocosas sobre a inanição de miseráveis crianças abandonadas. 

 O riso da morte é inútil frente ao fenômeno. A alegria pela vida, também. Após o diagnóstico, talvez uma gargalhada enfraqueça nosso próprio câncer. O choro talvez o torne soberano e poderoso demais. A indiferença nos faz impostores, hipócritas. Se nos colocarmos no lugar do outro, talvez estejamos perdendo o nosso direito de rir, e de chorar. Há mais tristeza no mundo do que nos limites de nosso apartamento.

quinta-feira, outubro 27, 2022

No próximo domingo, inegavelmente, a vitória sobre o Bolsonarismo é o que mira nossos mais profundos desejos. A precisa porcentagem que nos trará, ao menos, qualquer esperança de que à terra desça, um sonho intenso. Um raio vívido de amor e de esperança. Há muito resignei-me e aceitei que não há encantamento algum na política, assim como não há fartura ou abastança de virtudes, santidades e honras na raça humana. Campanhas eleitorais, imundas peças publicitárias, roupas, discursos, paradigmas e redes sociais. Somos trépidos aventureiros que escolhem entre o desespero e a aniquilação. 

Afora a vitória das urnas, o resultado não desenha-me um otimista. Temos uma axiomática derrota. Fomos constrangidos a ela. Perdemos e padecemos pela existência do fenômeno chamado Bolsonarismo, que há pouco, conhecíamos somente como alguma inexistente palavra que acolhesse em sua significação, conceitos como "boçalidade", "rudeza", "delinquência" e "imbecilidade". O Bolsonarismo nos tirou muita coisa. E nos deu outras. Brinda-nos com a obrigação de dividir o mundo com sujeitos que não pretendem dividir. Nem o mundo, nem o que dele origina-se. 

Confesso que ando pelas ruas imaginando a cada indivíduo que cruzo pelo passeio, qual será sua escolha. No que acredita aquele fulano. Seria capaz de ignorar um índio em chamas? Ou espremer com o alicate a língua de um adversário político, até que sob gerência de farta tortura, entregasse seus companheiros? Espancariam o filho homossexual ou menosprezariam a vida de meio milhão de brasileiros? Enxergariam tanto "espírito no feto e nenhum no marginal", incriminando jovens e pobres mães que, por ventura, não desejassem procriar? Ou derramariam mentiras kafkianas e esquizofrênicas, na tentativa de vencer a qualquer custo e manter um poder insensato, desleixado e irresponsável? 

 Homens e mulheres que acostumaram-se com o subdesenvolvimento da própria existência. Com a míngua da civilidade, da amabilidade e da benevolência. Estarão por aí, nas portarias, condomínios, piscinas, shows e veraneios. Nas torcidas, festas infantis, puteiros e capelas. Desertores da misericórdia e carrascos do altruísmo. Exterminam grosseiramente a doutrina cristã, e renegam o seu próprio Deus, ao ignorarem conscientemente o livro sagrado, quando nos diz: 

"O violento recruta o seu próximo e o leva por um caminho ruim." 

Havemos de vencer no domingo, e extirpar, ao menos do Poder Executivo, o símbolo da inépcia, da tolice e da maldade. Havemos de saber enxergar o outro, e compreender que a espécie humana é um descuido das divindades. Um hiato na harmonia do universo. E que estarão por aí os intolerantes, brutos e incapazes. Doutores, ou não. Endinheirados, ou não. Provavelmente seguirão a proferir sandices, mentiras, desvarios e delírios. A eleição não sumirá com os mentecaptos. Não esvaecerá os cretinos adesivados em volumosas camionetes. 

Eu tenho medo. Do meu país. De minha própria gente. Inquieto-me e desassossego-me. Que direi aos meus filhos? Que conversarei com o motorista do taxi? A que concepções dedica-se a moça do café? Roubaram-nos, por enquanto, a bandeira. Espoliaram-nos a serenidade, a trégua. Puseram universitários contra a integridade, pensadores contra a sensatez e negros de frente para a pólvora. Afanaram a ordem, a brandura e emporcalharam o silêncio, com tirânicos discursos e inóspitos comportamentos. Causaram-nos constrangimento. E tentaram, dia a dia, emoldurar outra vez heróis perversos e truculentos. 

Eu quero um Brasil que se orgulhe do preto. Não do verde e amarelo. Não quero patriotas. Quero cambalhotas. Um Brasil que cultue Marias e que respeite a história, reaja contra a dor e a miséria. Quero um país que talvez ainda nem tenha existido. Eu quero é enxergar a bandeira outra vez, como alegoria. E lembrar que por ali, há poeticamente o significado das cores. 

Afora das urnas, a cidade está lotada de ratos. E os ratos seguirão pelos esgotos. Haja o que houver, os ratos jamais desaparecerão.

quinta-feira, outubro 13, 2022

Ao meu avô

Hoje meu avô foi enxergar a cidade de cima. Como talvez não tenha visto em suas minuciosas diligências nas cartografias. Agora em celestial companhia e moderna resolução, como jamais pôde encontrar nos corroídos mapas a que se debruçou durante anos, por entre os poeirentos corredores do Instituto Histórico.
 

Meu avô era um curioso. Tinha a discrição de um adulto encabulado, e a bisbilhotice de uma criança que sonhava escutar as histórias. Averiguar as personagens. Entusiasta das revoluções, independências, batalhas e nascimentos. Zeloso pelas datas, episódios, tratados e cronologias. O meu avô era memória. Não dessas, rasteiras, a que se espera evocar o mês passado, ou anos atrás. O meu avô era capaz de rememorar a tensão platina durante a Guerra do Uruguai, e voltar à 1864, como se lá estivesse ao lado dos Colorados, ou mais provavelmente, pela aversão futebolística ao vermelho, lutando em companhia do Partido Blanco. 

 Diz-se do velho que jamais foi à Europa. Afora as enciclopédias e a farta literatura que insistira declamar a mim, meu avô não saiu do Brasil. E teria motivo? Posto que seu divertimento era desvendar as ruas da cidade, como se fossem filhas. Resolver o dilema das avenidas e descrever o cotidiano porto-alegrense como se testemunhasse a balbúrdia de cada esquina. Íntimo de Castilhos, Bonifácio e Getúlio. Conhecido de Canabarro e Garilbadi, olheiro das estâncias, das charqueadas e das missões, era capaz de narrar as biografias como se estivesse presente, sentado na velha cadeira de balanço, ou no despojado e simplório assento acolchoado, de onde batia com os dedos eficientes na maquina de escrever. 

Lembro-me do jornal espalhado na cama. Todo santo dia, ao lado do chimarrão, e da velha esposa. Amiga e companheira que a saudade deve aligeirar o velho pelos caminhos luminosos que levam da vida à morte. Pelo passeio leve e acelerado que faz-nos acordar sem ter de abrir os olhos. Onde os corações, pulmões e artérias, são dispensáveis. Supérfluos. Certamente meu avô se despedirá das calçadas da Riachuelo, e andejará resoluto até a General Câmara, avizinhando-se da Borges, onde encontrará um longevo admirador a abordá-lo no itinerário. 

Sem muita paciência para as frivolidades, mas ainda assim atento à magnitude da poesia, o velho declamava Neruda ao neto ainda miúdo. Com os olhos ensopados por uma lágrima fugidia, cantava as frases com aptidão cenográfica. Ao meu avô, parece-me que a palavra foi companhia perpétua, e dias antes de partir, foi ainda capaz de proferir-me sentenças de parnasianas construções, repletas de um sofisticado e engenhoso português. Língua a que ofertou elevado respeito, cortesia e gentileza. 

Porto Alegre já não é mais a mesma. E de seu bairro tão amado, o Menino Deus. Dedico-lhe um verso de Caetano, na canção que carrega o nome das cercanias: 

"Menino Deus, quando tua luz se acenda
  A minha voz comporá tua lenda
  E por um momento haverá mais futuro do que jamais houve." 

Não poderá mesmo haver futuro, ao apagarem-se os homens como meu avô. Homens que esmiuçaram o passado, e que indagaram os relatos, os livros e as anotações. Apaixonados pela cidade, e verdadeiramente fascinados pela pátria. Que saibam construir o que é subsequente. O que virá. 

Deixa meu avô um aviso, um pedido. Até mesmo uma advertência. Cuidem do futuro como ele cuidou do passado. Sejam verdadeiramente políticos e protejam a verídica família, a comunidade e os amados, assim como fez o velho. Até os últimos dias. Entranhado em farta e encantadora literatura, pleno de uma artística e rústica delicadeza, dedicado ao trabalho e às recordações. Meu avó é um fascículo volumoso na história da cidade. Do país.

quinta-feira, setembro 15, 2022

De Férias com o Ex


Não adianta. É axiomático. Sou um eterno apaixonado pela podridão. Obcecado pelo que é reles, depravado, baixo e ordinário. Fascinado pelo obsceno, enamorado das coisas canalhas, indecorosas. Há mais de poesia no indigno, e o que é sórdido e escroto tem maior aptidão e potência para ser belo. As melhores cebolas são, sem sombra de dúvidas, as que caem ao chão e são acidentalmente chutadas para debaixo do expositor. Eis o encanto do esquecimento, a beleza do desprezo e a existência rasteira, que foge aos manuais da perfeição e da plenitude. Como a vida. Como despertar humano. Como a respiração.
 

    

Por entre Hegels, Kants, Renoirs e Saramagos. Imerso na dedicação aos Sartres, Matisses, Confúcios e Heráclitos, pus-me a assistir um reality show chamado "De Férias com o Ex". Não fora o primeiro, posto que tornei-me um fã irredutível e fiel das desavenças e xingamentos praticados em "A Fazenda". Estava ali. Em algum momento da madrugada, eu havia terminado a primeira temporada. Tinha inveja dos corpos. Eram Apolos, Ares, Poseidons e Hércules. De ventres maciços e rijos, límpidos como em desenho. Com lábios encorpados e queixos protuberantes, os homens quase davam-me a coragem para o abandono das comilanças, das massas, caramelos e manteigas. Quiçá fariam-me hastear pesos e encarar-me agachando em frente ao imenso espelho da sala de ginástica. 


    

Se para os gregos, o belo corpo era sinônimo de uma mente brilhante, os rapazes de nosso "De Férias com o Ex" estavam afastados dessa premissa. Ostentavam não mais do que a capacidade de pronunciar as gírias, articular frases prosaicas e empolgar as moças. E não os depreciemos. Eu cobiçava também suas mentes e vocabulários, acanhadas perspicácias e sucintas mentalidades. Eram significativos, indelicados e rudimentares como jamais poderia eu arremedar. Sedutores inabaláveis e belos como os guerreiros medievais de aparentes cicatrizes. Abençoados pelo universo e por suas condutas sadias, atléticas e dedicadas. Uma provocação ao homem comum. 


    

Elas eram livres, independentes e empoderadas. Não menos do que lindas, cada garota carregava consigo aquela malandragem impostora e aquele glamour magnético de uma soberana Anitta. Douradas e curvilíneas, sensuais e animadas, representavam talvez o protótipo de uma neo-feminilidade. Antagônicas ao abuso masculino de um século XIX, eram formosas e ousadas, descontraídas, nuas e desapegadas. Havia contestação em suas condutas e revides em suas palavras. Alinhamento nas coxas e panturrilhas, recheio nos peitos e bocas, além dos relevos e proeminências nos traseiros e personalidades. Ávidas pela diversão e interessadas em uma nova liberdade, soterravam Mary Wollstonecraft com o esquecimento total de suas capacitações para a reflexão e para o protagonismo. Eram o televisionamento da velha e imposta fragilidade feminal, disfarçada e adornada pelos adereços ingênuos da emancipação. 


    

A escassez da sororidade e a ausência completa de uma genuína compreensão sobre os vínculos humanos, fazem do programa a perfeita exibição pública de uma sociedade apressada e angustiada. Loucos pela notoriedade, e ávidos pela multiplicidade dos carinhos e afagos, o programa exibia uma explosão de egos. E de casa, outra vez, eu nutria alguma inveja daquela gente. O mais incrível? Não havia vencedor. Ao oposto de outros programas como ele, "O de Férias com o Ex" não oferecia milhões, veículos, cursos, títulos ou troféus. O prêmio? Superar o nada dos prazeres, das ofensas (geralmente machistas), e das bebedeiras. Hedonismo, egoísmo e abuso. Minha alma apaixonada pela podridão e pelo nocivo, delirava a cada episódio. A reprodução incansável de velhos conceitos e práticas era, inacreditavelmente, a novidade revolucionária de jovens insuficientes, escassos, tolos, mas extremamente felizes e belos. 

 


Talvez nunca tenhamos visto tantas relações abusivas, e talvez nunca tenhamos falado tanto em como evitá-las. A sociedade do Instagram leva mais a sério suas postagens do que sua consciência, e aí talvez esteja o segredo para o novo modo de viver. A geração que esqueceu do amor, desprezou o outro e o romantismo exacerbado, como se a individualidade os fizesse completos, bem acabados. Seguidores de prazeres líquidos. Quantos ciúmes eu carrego desse poder. Já não bastava seus corpos, seus bronzeados? Não há psicanálise que possa vencer a energia jovial da imbecilidade, nem que consiga amansar a minha agonia. Afinal, eu havia escolhido a dor, a percepção e a entrega. 


    

O mais bonito? Não há inteligência alguma em minha escolha. Eu sou um espectador do caos. Um homem enfeitiçado pelas lentes antropológicas da perversão e dos erros, como se realizasse atividade acadêmica dedicada à decadência, ao vício e às taras. "De Férias com o Ex" é agonizante, perverso e maldoso. Há algo melhor do que isso numa sexta-feira à noite?

quarta-feira, agosto 31, 2022

Sérgio Buarque de Holanda, o "homem cordial" ou a dissimulação do brasileiro


Há muito compreendemos o que o nos quis dizer o historiador paulista. Nada havia de aprazível, ameno e terno no "homem cordial". Contava-mos sim com a aproximação etimológica de um convincente latim. O cordios, vinha do "coração". Agíamos e interpretávamos a história, os episódios e as impressões com a ingenuidade dos afetos. Com credulidade e talvez inocência, preferíamos o coração para dissimular as relações profundamente violentas a que estávamos habituados. O que Max Weber chamara de "Ética do Trabalho", em terras brasilis havia edificado-se como a Ética da Aventura. Conceito criado por Sérgio Buarque ao exemplificar essa relação muito pouco racional, e bastante amistosa. Mesmo que existente nas dependências e associações mais perversas e parasitárias. O explorador e o agressor poderiam facilmente nutrir avassaladora camaradagem e afeição pelo explorado, fazendo-o quiçá perceber sua degradante condição. É o que, maliciosamente faz o brasileiro comum. E há muito. Assim o machismo desembrulha-se como divertimento, a homofobia evidencia-se pela chacota e as intolerâncias e hostilidades contra a cor da pele, maquiam-se por entre desprendimentos, isenções e brincadeiras. 

 

A eleição de 2018, suas anterioridades e anteposições trouxeram-nos apressadamente o passaporte para a efetivação de um novo "homem cordial". O que vinha do coração e dos afetos, é prontamente disposto à frente de toda e qualquer racionalidade, agora em detrimento da afirmação de um homem que não discute trivialidades, que não liga para as agressões, rejeições e violências, mas que é violento, descomedido e agressivo. A provocação potente e a visível hostilidade são acortinadas e celebradas por trás de um véu bordado em conceitos enganadores como espontaneidade, simplicidade, desconhecimento e desembaraço. A denúncia ao ultraje seria, portanto, tratada como vitimização, ou com um pouco mais de graça, apelidando a conduta de "mi-mi-mi". Era outra vez o "homem cordial" mascarando conflitos e fortalecendo o patrimonialismo.

 

Estamos predestinados à tolerar a exploração. Talhados à reverenciar relações abusivas e celebrá-las como espontâneas, genuínas. Dos entregadores de comida às empregadas domésticas. Das mulheres, dos cotistas, índígenas, negros e miseráveis, aos ribeirinhos e trabalhadores sem terra, há sempre um cordial e simpático amigo que os governa, e os afronta publicamente, em detrimento de uma relação conveniente e saudável. O mercado, a globalização, os pomos amargos de um capitalismo excludente mas necessário. São tantas alegações e teorias, justificativas e pretextos. A esfera política foi invadida pelas pautas oportunas e pertinentes ao velho "homem cordial". O presidente afasta-se da responsabilidade de um dirigente, da sensatez de um líder, e atira-se intrépido na informalidade de um genérico cidadão, de um despretensioso e reles sujeito.

 

Enquanto seus adeptos, simpatizantes e até os sonsos imparciais, puderem aplaudir a farsa de um brasileiro dissimulado, dilataremos nossa infinita discrepância a um lugar inspirador, justo e fértil. Enquanto a graça e a naturalidade esconderem as feridas mais profundas de nossa comunidade, continuaremos a conviver com o tresloucado raciocínio de que nossa ditadura foi benéfica, e de que naqueles tempos, não havia a usurpação do dinheiro público. Gilberto Freyre seguirá vivo e afirmando que nossa escravidão foi branda, demonstrando um racismo lírico, piegas e romanesco, como se não houvesse sangue, lágrima e dor nos corpos negros.

 

O brasileiro é dissimulado e gosta de sua própria falsidade. Reverenciamos a dominação masculina às mulheres, quase sempre sorrateira, indireta, e colorida pelas tintas do amor e do carinho. Festas, opiniões e símbolos, o brasileiro é um malicioso perpetuador das dores. E precisamos, senão no almoço da família, ao menos na política, varrer o impostor cordial para longe do poder. Ele anda inventando até que a liberdade de expressão o alforria das condenações pela conduta intolerável e hedionda. O "homem cordial" ignora os dados, as pesquisas e o jornalismo. Não lhe interessa que se noticie a sua crueldade. É alienado de si, e não há pior alienação. Exceto para a arte. Mas bom… disso o "homem cordial" não entende nada.



quinta-feira, agosto 25, 2022

Bolsonaro não é gay

Jamais a mim pareceu absoluta veracidade o fato de que a aversão caracteriza alguma afinidade, paixão ou tesão. O intolerante teria assim, a magia de um conflito, algo finamente psicanalítico que pudesse explicar sua violência, seu sectarismo e sua estupidez. Fugiríamos do fato de que odeia, assim como ama, utilizando-se de certezas grosseiras, indelicadas e principalmente, confiando e valendo-se de argumentos imprestáveis. 


Mas algo me chamou a atenção. Parece-me talvez um sinal de que o amaldiçoar dos comportamentos e desejos alheios, escorre por entre os dedos curiosos, entusiastas e até encantados do tirano. Pelo décimo segundo ano consecutivo, somos o país que mais assassina transexuais no mundo. A rejeição familiar, a marginalização econômica e a impunidade machista dos criminosos, empurra-nos ao fundo do poço. Por outro lado, segundo os sites especializados no assunto, somos também mundialmente, o país que mais consome "pornografia trans". Temos um conflito de informações ou uma prova inequívoca de que a agressão sucede o arrepio? O tesão? Parece que tem gente demais maldizendo o carnaval, enquanto as ruas seguem lotadas de foliões, brilhantes fantasias e mijos na porta das lojas. 


O país de Bolsonaro é o campeão em momentos eróticos com transexuais, enquanto domina, humilha e afronta homens que desejam homens e mulheres que, por um tropeço genético, nasceram com um elemento trocado por entre as pernas. Essa é a verdadeira liberdade de Bolsonaro. A anarquia racional, a barafunda humana, a esculhambação de uma república. Querem o assassinato e a segregação de quem, há dois minutos, lhes serviu como subalterno, como inferior. Assim raciocinam também com as mulheres, posto que em nenhum momento lhes atribuem valores acima dos que assistiram por toda a vida em suas tradicionais famílias brasileiras. Aqui a mulher, ao homem instintivo, carrega nos seios plenos a existência incomodativa.  O motivo pelo qual a travesti torna-se perfeição. 


"Brasil não pode ser país do mundo gay. Temos famílias.", disse o parco presidente à nação que já persegue homossexuais naturalmente, como se maldição demoníaca fosse, tal e qual a cruel caçada aos albinos no Malawi. País miserável e rudimentar do sudeste africano. O fato é que não somos um país do mundo gay. Somos um país que, também miserável e rudimentar, vergonhosamente ainda massacra dois homens apaixonados ou garotos afeminados que desejam não somente sobreviver, mas existir, como pessoa. Gozar.  E reaprender.  Ensinar-nos insistentemente a multiplicidade do amor. 


Disse-nos o RedTube que essa obsessão reflete também em masturbações às escondidas ou em festas privadas com travestis e transexuais. Fato que não devia causar-nos constrangimento, a não ser que protegêssemos e zelássemos por quem nos encanta sexualmente. Mas feito o samba, o funk e a religião africana, a orientação homoafetiva é tratada nas Terras Brasilis como marginal, periférica, delinquente. E assim o país que se esconde em personalidades como Bolsonaro e sua corja, parece convencer-me de que a aversão é o resultado de uma incrível atração. Mas parece somente. Porque pouco me convence. Afinal, onde muito se critica, muito se deseja? Onde muito se agride, muito se fantasia? E onde tanto se mata, muito se é tentado pelo tesão? Não é razoável para mim. Parece-me pouco. 


Bolsonaro não é gay. Não é afeiçoado à vida a ponto de subverter nada que é banal, como a heterossexualidade. Não possui a capacidade abstrata de insubordinar-se à criação estúpida e ao modo descortês com que trata os discordantes. Bolsonaro não ama nem as mulheres, nem os homens. O exceptuado capitão ama, quiçá, suas certezas belicosas e seus argumentos tresloucados. Não carrega consigo a capacidade de ser ardente como Ney Matogrosso, deslumbrante como Pablo Vittar. Não chegaria perto da bravura de Laerte, da sapiência de Renato Russo ou da maestria artística das Dzi Croquettes. Bolsonaro não tem a sabedoria e a aptidão humana para gozar com um homem. E sua trupe não há de compreender o orgasmo, a libidinagem e a safadeza dos corpos e das almas. No máximo, lideram a imoralidade no trabalho, no gabinete ou na frieza dos afazeres de suas funções. São indecentes onde não deveriam. Degenerados e escandalosos de forma apolínea, e nunca dionisíaca como necessita o princípio vital humano.

Todo Bolsonsrista é um infeliz, que disfarça de si a própria imoralidade. Esta que faz-nos música e não rocha. Que dobra-nos como tecido e não como folha seca. 

Jonas Lewis da Costa Franco

domingo, agosto 07, 2022

Solidão

 


Fui um garoto sozinho. Nunca desamparado ou desfavorecido. Há de se compreender a diferença. Sozinho. E mesmo se no meio de muitos estivesse, desabitavam-me. 

A solidão não é um caminho. Não é um sentimento. Não chega de repente assim, como a ira ou a dor. A solidão não dói. É como um cheiro de mar, que mesmo longe de qualquer litoral, pode-se perceber. A solidão é um sonho persistente. Um engano na própria capacidade de sonhar. Constante e permanente como a existência. A solidão tem sua própria respiração. Incansáveis pulmões que inflam-se como lagartas bem alimentadas. Envaidecem como um pingo grosseiro de chuva caudalosa. 



Não sei bem no que pensava enquanto caminhava nas pedras pontudas da rua vazia. Acuminadas e negras, açoitavam os pés imaturos que buscavam alguma serventia no passeio. Quando se é solitário, tudo vira poesia. Quer-se a companhia das conjunções, a intimidade com a desistência das frases. Recordo-me pouco do que não fosse solidão. O repouso das tardes em que não havia ninguém. A feroz imaginação que engendrava inutilidades, e monstros. A destruição que sempre nasce do exílio, assim como a construção rebenta do isolamento. Incoerências que enganam a ciência e caloteiam a lógica. Tudo para zombar dos sujeitos e torná-los relevantes. 



Fui um criador de temores, e há tanto de encantador no desassossego, que pude enganar alguns desavisados. Não havia em mim alegria. Havia talvez o entusiasmo de intercalar minha solidão com alguma necessária gozação. Havia a urgente deserção do medo. A efêmera utopia de uma alma festiva e radiante. Era um dissimulado. 



Acostumei a olhar o chão e nunca o céu. Fugira da banalidade das estrelas, e da infante curiosidade pelos planetas. Fui um garoto dos assoalhos, dos pavimentos e das gramas. A solidão fazia-me pousar o queixo sobre o início do pescoço. Eu gostava era de enxergar a ponta dos pés, os joelhos. A pressa das formigas. Parecia que ali estavam as frases abandonadas, como se o chão hospedasse o que foi calado, a resignada palavra que por um momento, parecera perfeita, cabível. Somos o resto das coisas não ditas. O subproduto de um universo calado, esquecido e solitário. O que perversamente fugiu de uma folha amassada, de um poema não fecundado. O que escapou pela fresta de uma frase engolida. O mundo real é a inconveniência que perturba a placidez do inexistente. E o inexistente é o sustento da solidão. 



Eu continuo o mesmo garoto. Não há evolução ou metamorfose que não um conjunto de percepções, costumes e escrúpulos. Aprendi alguns segredos e atinei às soluções. Métodos, etiquetas, caminhos e prescrições. Alfabetizei-me no esquecimento do chão, na rejeição às formigas. A gente aprende até a somar os números, e dizem-nos que é importante. A gente vira o não dito, e as palavras caladas abarrotam as gavetas do corpo. O corpo do mesmo garoto. Solitário, como as palavras esquecidas que guarda com afinco. 



Não há prazer algum na solidão. Não há descoberta. O deserto anseia por água, após conhecê-la, e talvez todo garoto seja um deserto ávido, impaciente pela companhia do outro, pela divisão de sua jovialidade. O garoto se distrai, compete, quer o vínculo. Ainda não lhe cabe a harmonia do sexo, a afinidade apaixonada do romântico ou a sensatez monitorada de um adulto. Mas o garoto inventa a realidade num carpete. Sábio, foge como louco da solidão. 



Hoje eu não sei onde guardar minha solidão. Não há garoto, nem carpete. De gavetas lotadas e tempo escasso, percebo que solidão não se guarda. A solidão é cola, encalço. Pegadiça como mel. Com a solidão a gente faz um pacto, que eu e ela descumprimos todos os dias. 


terça-feira, julho 05, 2022

Os confins do humor ou o charme da atrocidade?

Muitos foram os nomes. O bíblico Barrabás, que ao invés de um trivial larápio, pode ter sido preso como revolucionário que afrontara os romanos na batalha por Israel. Jesse James, com nome de galã Hollywoodiano, especialista em assaltos durante a Guerra da Secessão. Billy The Kid, o famoso fora da lei que assassinava e roubava animais durante os românticos tempos de Velho Oeste. A dupla Bonnie e Clyde, presos após dezenas de assaltos a banco, e mais recentemente o cativante e sedutor Pablo Escobar, personagem de séries, filmes e documentários, que em sua maioria, enobrecem e eternizam as maglinidades cometidas pelo traficante colombiano. 

Capone virou nome de restaurante. Charles Manson constitui parte da alcunha de um rockstar, e até Lili Carabina teve sua vida encenada pela estrela brasileira Betty Faria, num filme intitulado "Lili, a Estrela do Crime". Elias Maluco, Fernandinho Beira-Mar, ainda num carinhoso diminutivo, que o faz parecer apreciado, querido. Bin Laden, Saddam, e como esquecer de Jack, o Estripador?mistérios e incógnitas, que geram histórias, livros e estudos. O homem que assassinou treze miseráveis messalinas, e até hoje é lembrado com elegância, e certo fascínio. 

Há no crime, inegavelmente, algo de romanesco, lírico. Por entre invasões, trapaças e golpes fatais, a história das vítimas é deixada de lado. A própria sociologia e criminologia glorifica o contraventor, ao estudá-lo. Afinal, quase todo objeto de estudo é intrigante, encantador, e tratando-se das mazelas psiquiátricas, o corriqueiro ser humano torna-se raro, incomum, e por conseqüência, admirável, surpreendente. A violação de princípios morais é, por si só, uma elegante espécie de arte, que enfeita as tragédias e inspira o reconhecimento desses agentes do caos. E aqui não estamos falando de Guy Debord e de sua "Sociedade do Espetáculo" que por certo tem suas louváveis considerações sobre esse fenômeno. Talvez estejamos falando do deslumbramento humano pelo que é empedernido, anárquico e por tantas vezes, desumano. 

O consenso civilizatório, quando deturpado, causa-nos talvez uma espécie de encantamento, capaz de produzir imensa identificação tipológica com gângsters, poderosos, assassinos e golpistas, que em sua obscura existência infame e transgressora, pintam de forma surrealista o cenário monocromático e insosso do cotidiano. O canalha que trai com inteligência e método, o conquistador que ilude e dissimula, e o contrabandista que proporciona o acesso ilegal ao produto vetado e escasso, tornam-se facilmente heróis da indústria cinematográfica e cultural, alimentando como Prozac a alma de cansadas criaturas. Lampião, Madame Satã e Robin Hood, tentamos até impor-lhes benevolentes intenções, a fim que possamos talvez, consumir-lhes com aprazibilidade e mansidão moral. Afinal a culpa castigaria-nos vigorosamente ao assumirmos a pacata identificação com estupros, facadas e roubos.

Há quem se pergunte, ainda, o por que enxergamos a ostentação e a exibição de fuzis nas mãos de pequenos meninos na periferia da cidade. E por que os garotos brancos de escolas particulares, fantasiam-se de meninos periféricos, consomem sua música e evidenciam a sua moda, nas vestes, na linguagem e na conduta. O crime, a contravenção, a transgressão e a desobediência civil, os conferem a resplandecência e a luminosidade social que a todo jovem é primordial. 

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, nos "Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo”, investiga a sociedade pós-moderna, marcada pelo desinvestimento público, pela perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas, e evidenciada pela cultura desimpedida, que tenta serenar e apaziguar as relações humanas, buscando um tipo de predomínio da tolerância, do hedonismo, e principalmente, a coexistência pacífico-lúdica dos antagonismos. A lógica neoliberal é parte primordial desse processo, assumindo que enseja a exclusão e a discriminação como parte preponderante de seu projeto econômico e social. Mas necessitando quase sempre, desse fleumático e manso convívio entre opressor e oprimido, entre tirânico e humilhado. 

Da Vinci e Goya foram engraçados. Puseram humor em suas obras e aos olhos mais desatentos, talvez tenham passado despercebidos. Na filosofia e no mundo acadêmico, o escárnio e a zombaria são um sinal inequívoco de superficialidade. De incultura e imperícia, e talvez até de certa incapacidade de produção literária, filosófica. Havemos de transfigurar, e mesmo que meia dúzia de teses adotem o riso como tema, ainda passamos longe da averiguação séria, de um assunto gozado. A lógica confusa de uma sociedade que celebra o crime, traduz-se num humor de humilhação e arrogância, que transforma o politicamente incorreto em indispensável, e não mais em equipamento cômico. Há certa perseguição pelo choque, e pelo riso triste. Aquele que provém de uma hostilidade ao desvalido, ao desamparado ou ao inválido. 

Eis que me deparo mais uma vez com o texto afrontoso e malvado de um comediante chamado Léo Lins. A afronta e a maldade, não são vilãs e jamais a arte as assumiria como tal, mas o humor que somente é capaz de esculachar a tristeza, de meritizar o estupro, a deficiência física e o drama dos indefesos, é arte debilitada, quebradiça, e intelectualmente pobre. Condenada ao tempo. O humor, que há tanto tem sido repudiado pelas camadas intelectuais e acadêmicas, na voz desse rapaz, é infelizmente um apelo bobo e gritante pela atenção da mídia. Sem a coragem e a astúcia de Capone, ou a impavidez de Escobar. Sem a elegância dos mafiosos italianos e a perspicácia de Ronald Biggs, Léo Lins será esquecido pelo tempo, e venerado por grosseiros, indelicados e insensíveis. Não o quero suspenso, censurado e calado. O desejo o tempo. Não há nada mais engraçado do que o tempo.

sexta-feira, junho 24, 2022

E lá estava. Sentado numa das centenas de cadeiras estofadas do auditório. Escola particular da cidade. Garbosa e elegante, bem sinalizada e limpa. Imensa. Era o dia de receber os familiares, e celebrar a sagrada e santificada instituição esculpida pelos parentes. Recrutados pais e ornamentadas progenitoras, esperavam sentados ao lado dos filhos pela cerimônia. Os herdeiros ao celular, e lá estava eu, calvo, cândido, alvo e caucasiano. Mais um privilegiado que dirigiu seu veículo até a escola. Não havia discrepância. A disposição cênica do local era constante, uniforme, como um jantar na Berlim de 1930, onde correligionários bajuladores de Adolf o cercavam lisonjeados da situação. Pais e mães, avós e irmãos. Cônjuges, patroas, senhoras e sinhás. A platéia era o escárnio de um Brasil melancólico. 

As palavras do mestre de cerimônia eram murchas e delongadas, como se batizasse-nos catolicamente. Como no fatídico domingo de Páscoa, parecíamos apóstolos recebendo a vida nova de um Cristo ressuscitado, e toda aquela desalegre atmosfera lotada de arrependimentos, culpas e penitências. Afinal, era uma escola. E todos éramos cristãos. Escutei o homem que engrenava o evento. De voz mansa, como um padre germânico, louvou a família e suas escalações, esquecendo-se talvez acidentalmente, das possibilidades reconstituídas, homoparentais, homosexuais, inférteis, informais e dessemelhantes. Enaltecíamos, portanto, a tranquilidade de uma linhagem anacrônica, cautelosa quanto às contingências humanas. Éramos o retrato daquele auditório. O discurso adequava-se magistralmente à realidade daquelas crianças. Não poderíamos proclamar a fantasia, poetizar a existência e falar a língua das borboletas, para as formigas. Jamais entenderiam. 

Olhei para trás e estavam todos mortos. Eram cadáveres inanimados que esperavam pelo fim daquela festa. Que almejavam o sossego de suas casas, num país ainda pandêmico, isolado e selvagem. Sem máscaras, estávamos seguros pelas muralhas da escola, e ainda tínhamos de prestigiar o talento dos alunos, que subiam ao palco para executar canções decoradas. Cabisbaixos ao violão ou ao piano, expressavam sua macilenta existência, e cantavam a insuficiência daquele ambiente. Púberes e curiosos, que precisamente cabiam naquele educandário. Seus mestres eram homens e mulheres brancas, casados e constituintes de uma respeitável categoria. Capazes e indicados para ensinar aos pequenos os mistérios da química, os valores humanos e a impecabilidade da aritmética. Bhaskaras, cinemáticas e condutas. Tudo ali, descosturando a humanidade latente de jovens sujeitos. A Tábula Rasa, de Aristóteles, preenchida pela negação da realidade cultural. Entulhada pela insuficiência da diversidade, e enfeitada pela intimidade com o análogo, nunca com o oposto e o dessemelhante. Aqui todos são iguais. Buscamos identidade, conformidade. E mesmo que em profissões diferentes, concursados ou empreendedores, carregamos a palavra de Cristo e a poderosa branquitude endinheirada. 

Queremos que nossos filhos conheçam o país, mas não tanto. Não havemos de conglomerar e confundir. Uma rápida passada pelas revoltas e lutas populares, um professor de história que pareça diferente e alguns atos caridosos, livra-nos de um cálido e impiedoso inferno. Tamoios, Palmares, Mascates e Malês. Balaiada, Sabinada, Praieira e Cabanada, era tudo tão longe. Tudo tão passado. 

As escolas particulares são covis. Fantasmas desnorteados em meio ao camelódromo da realidade. Vencidas e convencidas por um país iníquo, que persiste numa danosa segregação. Preparatórias aos vestibulares e concursos, aeroportos, bistrôs e condomínios. Jamais à veracidade cultural, étnica e política. Em tempo algum à diversidade sexual, e à integração dos discordantes e desiguais. Somos a massa do mesmo bolo, a água do mesmo copo. E ninguém anda bebendo-nos. Não hidratamos mais nem a nós mesmos.

domingo, março 06, 2022

Música e literatura. Aqui estão os meus narcóticos. Antálgicos paliativos, como Dipironas e Tylenóis. A primeira dá-me o sustento costumeiro, enquanto pela segunda, conservo somente a certeza em cometê-la de maneira mais exuberante, potente e talvez, elegante. Mas o que há de ser elegante na desordem arranjada de minhas fabricações? Pudera esperar atenção às edificações pronominais e aos ornados clamores de minhas ficções? Jamais. E respondo com indubitabilidade adolescente, posto que já não é possível atrair um olhar atento. Manuscritos, poemas e tratados, por mais rudimentares e mal-acabados, exigem o ser desobstruído, transitável e metafísico. Impõe organismos cobiçosos, ávidos monstros seduzidos pelo outro. Pelo sangue ou pelo gozo. 


A lógica traiçoeira do neoliberalismo, em atada promiscuidade com a glória da solidão, torna a necessidade da vitória ainda mais imprescindível. A repressão não vem mais de fora, e não sabemos mais contra quem revolucionar. Não há bandeira que nos valide, então balançamos bandeiras que não agitam, num estúpido processo de mitose. Nascemos de nós mesmos e resultamos em proporcionalidade, isonomia. Não pode mais haver satisfação e deleite na derrota do estranhamento, na imprudência do fracasso e na simplicidade da fraqueza. 


Culminamos portanto na autocracia do Coaching, no absolutismo da autovalorização, mesmo que isso signifique a humilhação da linguagem, a escassez imaginativa e o pior: a segurança de princípios, valores e condutas. O idiota só é realmente idiota quando passa a ter certeza de suas idiotices. E passa a ser nocivo quando as compartilha publicamente, na ilusão de ter alguma influência no corpo social. O imbecil torna-se então, comum. O indivíduo contemporâneo, que é capaz, efetivo, profundo e significativo. Somos o anti-niilismo, que como mágica, abandona o pessimismo de Cioran, a ânsia de Kierkegaard, e embarca sonâmbulo na distribuição de performances, de feições, imagens e dissimulações.


Não estamos próximos do suicídio. Somos o próprio suicídio. Aniquilamos a desinformação e suprimimos o ócio, num ócio furtivo, confeitado com os arabescos da sabedoria, com as louçanias da realização. Já não pode haver nada brusco, ousado e escandaloso, e cada passo é analisado com a lupa leviana de uma patrulha política, que já nem sabe o que significa o que. 


Estamos enrolando a merda de nosso cachorro num saquinho. E já nem enxergamos mais a merda. Já não somos capazes de contemplar nada que não seja plástico, limpo e engajado. 


Que saudade de enfiar os sapatos na merda.

Pusemos também o amor em seguridade, e se pudéssemos, teceríamos apólices que o garantissem ilibado, intocável pelas indomáveis ameaças da efervescência humana. Por entre partidárias descrições em aplicativos de relacionamento, memes e tolas diretrizes fabricadas por mentores e inspiradores digitais, o amor é logaritmo, lógico, coeso e lápide. Lousa tumular como fim de epopéia. Um cansaço inevitável como o ápice de um Himalaia. Prescrições, ordens e condições, como se pudéssemos escapulir do acaso, fugir dos quiçás e dominar os infortúnios. Como se propuséssemos o fim da psicanálise e aspirássemos, contemporâneos, as líquidas e metódicas resoluções.


O Eros de Platão, como disposição primordial, limitando o amor ao tempo. Sadio e robusto desejo que, quando realizado, deixa de existir. O desaparecimento do ser amado, ao primeiro sinal de uma concretização. O velho lugar-comum de um ser humano que cobiça permanentemente o que não possui. E ao possuir, procura imediatamente o incógnito, estrangeiro, o que é invicto de sua retenção. Depois o Filos de Aristóteles, que parece-nos também apalmado, e tão rasteiro ao chão que deposita na alegria, o alicerce do amor. A escassez do deleite, da animação, prontamente fantasia o amor com as vestes merencórias da indiferença, como se a vontade e o empenho em perpetuar o sentimento, fossem vulneráveis e derrotáveis pelo momento infeliz.


Há de se respirar. E afinal compreender que a filosofia talvez tenha sufocado o amor como quem tenta traduzir poesia. Como quem pretende compreendê-la. Como quem possui vertiginosas soluções aos questionamentos da arte, e como quem explica a expressão humana em breves e convictos discursos. Requintado e elegante talvez seria assumir a posição de um descolado Nietzsche, quando considera a célebre passagem de "O Banquete", onde os deuses castigaram-nos, e dividiram-nos para que vivêssemos de falta e carência, tentando encontrar a metade que nos faltava. O sábio e afamado bigodudo, postulava o amor como dependente de uma capacidade de autocompletude e autoafirmação. Apenas indivíduos plenos de si podem amar, e não seria, portanto, o amor, mais do que um derramamento. Uma espécie de luxo e de dádiva daquilo que cada criatura conquistou por si e para si. O amor seria desejo de partilhar a própria vitória. O ato de repartir o sucesso, o equilíbrio e a notabilidade. 


Mesmo muito distantes das filosofias prussianas do Século XIX, as ruas, galpões e até mesmo o Instagram e seus desvairados, parecem adotar o pensamento descrito. Ocultam e esquecem propositadamente a insciência do amor. O que lhe torna poesia e nunca gnose, conhecimento. Repartir a ânsia, e esquecê-la com a esperança. Desabar pelo esbarro na ilusão e levantar-se pelos corrimões de uma ainda incerta e púbere confiança. Acreditar nos deuses da esquina e escutar os mantras que transportam-nos para o fundo de um oceano escuro. Não há cães, gatos ou bolinhos de chuva. O amor é assustador, e tem de ser, como o poema. É um drible no tempo, que esborracha os relógios e repinta todas as paredes. Como se pode prever a incerteza, se até sua previsão é incerta? Schopenhauer e sua indelicadeza, Voltaire e seus enfeites, Sófocles e a ingênua noção de que o amor liberta as dores da alma, Hollywood com sua miserável e inoportuna mensagem romântica…


Quanto temos maltratado o amor. Quanto o temos achatado por condições e análises. Havemos de reconsiderar, e talvez elevá-lo ao patamar que merece. Puséssemos o amor como bicho, e quiçá teríamos estudos demasiados. Cartilhas escolares e questões de vestibular. Se o considerássemos sonoridade, milhares o avaliariam, manifestando desagrados auditivos. Quem sabe se o amor virasse comida? Não. Com os reality shows, especialistas o provariam e decidiriam ali, arrogantemente, se presta ou não. O que lhe falta. 


Que deixemos o amor sem intromissões. Façamos logo dele bigode de sapo. E não se fala mais nisso.